terça-feira, 26 de maio de 2020

O COVIL DE 19


O COVIL DE 19

O decreto era simplório, possuía apenas dois artigos. Constava do diário oficial: “artigo 1º - Fica decretada a extinção do coronavírus nas dependências do nosso Município de Amasialia. ”. “Artigo 2º - Revogam-se todas as disposições em contrário, inclusive as chinesas. ”.
E assim, com uma canetada dada pelo Prefeito Antônio Serrado de Carvalho (com uma caneta azul benzida e abençoada por Manoel Gomes no último show feito por este na cidade), foi que se pretendeu excluir totalmente a incidência do coronavirus do pacato Município de Amasialia. Tudo isso em virtude de um óbito e de um estado grave apresentados na localidade: morreu Antônio Mufino, mendigo barbudo conhecido que rondava as ruas. E, em uma UTI da capital, depois de ser levado às pressas, ofegava Pimenta do Rêgo, principal adversário político de Antônio Serrado de Carvalho. Além destes havia outros dois casos confirmados pelos médicos da cidade.
A edição do decreto foi um ato de desespero:
- Antônio Mufino contaminou todo mundo! - Disse Antônio Serrado a um correligionário momentos antes da edição do documento. Relatou que o mendigo costumava adentrar as residências sem permissão, e pedir esmolas com sua língua presa, e sua fala incrementada de cuspe. Geralmente se negava a esmola depois do banho de saliva.
O ato foi desesperado, mas pareceu dar certo. Os sintomas que foram apresentados nas duas pessoas dos casos confirmados sumiram, e novos testes foram realizados, desta vez com resultados negativos. As escolas voltaram a funcionar, a feira livre se desenrolava normalmente, os supermercados lotavam todos os dias, festanças eram patrocinadas na cidade, campeonatos de futebol com mais de quatro times eram feitos, orgias com mais de cinquenta pessoas eram gozadas, jogos de baralho, dama e dominó ocupavam simultaneamente as dez mesas da praça; a igreja católica lotava nas missas aos domingos, os cultos das evangélicas do mesmo jeito, os centros espíritas da mesma maneira, os salões das testemunhas de Jeová da mesma forma, os terreiros de candomblé também; e o cabaré voltou a funcionar a todo vapor.
Em frente ao antro de prostituição havia dois cartazes. No primeiro, uma cerveja do tipo corona com um “x” vermelho na frente e o dizer: “aqui não há Corona!” Logo depois, no segundo, as imagens das cervejas Heineken e itaipava, bem como de uma garrafa de Vodka. Havia o dizer: “ não temos Corona, mas temos Heineken, Itaipava e Vodka: o trio HIV. Use camisinha! ”.
Enquanto o mundo inteiro lutava contra o maligno vírus, Amasialia sobrevivia, imune: tudo graças ao decreto assinado por Antônio Serrado de Carvalho. Pessoas infectadas de outros lugares vinham até o Município, e quando adentravam as dependências da cidade, como que por encanto se curavam: o coronavírus estava extinto por decreto assinado pela caneta mágica azul do prefeito, benzida e abençoada por Manoel Gomes no último show realizado por este na cidade.
A população da cidade aumentou vertiginosamente, sobretudo em razão da vinda de infectados que se curavam e de cautelosos que se resguardavam. O mundo se admirou, a mídia passou a querer entrevistar o prefeito.
- Qual foi o segredo para que o coronavírus fosse extinto do seu Município? – interrogou o repórter.
- Ele foi extinto por um decreto assinado por mim com a caneta mágica azul benzida e abençoada por Manoel Gomes no último show realizado por este nesta cidade! – respondeu o Prefeito!
- E o que me diz do caso do seu adversário político, que está na capital se tratando em uma UTI?
- Não veio aqui se curar de besta! Mas, ele não é mais dos nossos: foi embora não é mais dos nossos. Pimenta do Rêgo é dos outros! – respondeu tomando um refresco.
A cidade estava superlotada. Pessoas do Município vizinho de Concordia foram até o gabinete do Prefeito e sugeriram a união dos dois, para que os efeitos do decreto se estendessem aos concordianos. A sugestão foi dada, mas o Prefeito de Concórdia, pasmem, não concordou.
Com isso, Antônio Serrado de Carvalho, em nome da dignidade humana, e alegando que discordava do Prefeito de Concórdia, expediu novo decreto declarando guerra contra o Município vizinho, assinando-o com a caneta mágica azul benzida e abençoada por Manoel Gomes no último show realizado por este na cidade.
Amasialia venceu a guerra contra Concórdia após um saldo de mais de duas mil mortes. Com isso, Antônio Serrado de Carvalho decretou que Concórdia pertenceria a Amasialia, bem como determinou a ressurreição das duas mil vítimas da guerra.
Curados foram os ex-concordianos infectados, e revividos foram os dois mil mortos, dentre eles o ex-prefeito da cidade tomada. Antônio Serrado de Carvalho o chamou para seu gabinete e disse:
- Agora concorde comigo, ex-prefeito de Concórdia, caso contrário te mato de novo. E, para isso, não preciso de muito: basta que eu assine um decreto com a caneta mágica benzida e abençoada por Manoel Gomes no último show realizado por este nesta nossa cidade!
Antônio Serrado de Carvalho era um verdadeiro conquistador. Viu Luis XIV prostrado com suas vestes reais lhe dizendo:
- O Estado és tu!
Presenciou também Napoleão Bonaparte montado em seu cavalo, com seu chapéu militar, oferecendo-lhe de bom grado o território da França, e qualquer outro que viesse a querer.
Estava tentado a aceitar a oferta napoleônica quando viu uma porta negra misteriosa abrir, de onde saiu o diabo rodeado por anjos de branco.
- Pimenta do Rêgo? Pimenta do Rêgo morreu e se transformou no Satanás! – gritou aos berros, quase chorando, o pobre Antônio Serrado de Carvalho.
Acuado sob a mesa, ousou olhar novamente para o diabo e para os que o rodeavam.
- Antônio Mufino tá com ele! Virou um anjo! Um anjo a serviço do Cão Pimenta do Rêgo! Corre, Napoleão! Foge, infeliz!
Bonaparte tentou fugir, mas teve seu cavalo e chapéu tomados por Antônio Mufino.
- Não quero olhar essa desgraça! – disse Antônio Serrado tapando os olhos com a mão. Ouviu a voz de Pimenta do Rêgo dizendo:
- Ele é sempre assim descontrolado, doutor Antônio Rufino!
- Sim... não só ele. Nossos 19 pacientes vivem fantasiando, tendo alucinações! Parece-me que cada um já encarna um personagem fixo, nós já conhecemos quase todos!
- Entendo... pretendo melhorar as instalações desse manicômio que, com todo respeito, mais parece um covil, uma toca! Enquanto isso, cuide para que fiquem bem!
- Claro que sim, Prefeito! Concordo com o senhor! Agora, se me dá licença, vou até a cozinha devolver a vassoura e o chapéu do jardineiro, que nosso Napoleão reclamou para si!
- À vontade, doutor!
- Charles! Tome o cobertor e os tamancos que Luís XIV roubou do quarto da enfermeira Carla!
A porta se fechou. Antônio Serrado de Carvalho abriu os olhos. Luís XIV estava seminu, e Napoleão havia perdido seu chapéu e seu cavalo.
- Tenham calma, rapazes! O cão nos atentou, e fez com que uma praga caísse sobre nós! Não fiquemos preocupados! Com um decreto restituirei as roupas, o cavalo e o chapéu...
A porta abriu novamente. Dela saiu Antônio Mufino!
- Ah sim... devolva minha caneta, por favor! – falou tomando-a forçosamente, contra toda a inútil resistência de Antônio Serrado de Carvalho.
Ao sair da sala, o doutor Antônio Rufino ouviu o choro descontrolado e o grito quase uníssono dos dezenove loucos:
- E agora, o que vamos fazer sem a caneta mágica azul benzida e abençoada por Manoel Gomes no último show realizado por este nesta cidade?


Antoniel Medeiros do Nascimento Santos
08 de abril de 2020

Um comentário:

  1. Muito bom, Antoniel. A escolha dos nomes foi fantástica. O enredo engraçado expressa bem o momento tragicômico que ora vivemos.

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