terça-feira, 26 de maio de 2020

Civilidade X Barbárie



Civilidade X Barbárie

Como fazer brotar a semeadura em solo pedregoso, como reacender a chama, dar visibilidade ou fazer enxergar a clareza da obviedade, quando o mais conveniente, para determinados grupos, é não permitir a passagem de qualquer raio de luz que os levem a aceitar a realidade dos fatos? Busquemos na filosofia um pouco de claridade para os questionamentos em pauta.
No texto, ao tratar da temática “que é o esclarecimento?”, o filósofo prussiano Immanuel Kant, parte da junção do empirismo com a racionalidade e faz referência ao filtro, óculos por onde passam as informações recebidas, com as quais caminhamos num processo de esclarecimento dos acontecimentos. A leitura da realidade se dá pela passagem das lentes dos óculos que usamos para processar as informações recebidas e observadas. “Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade, se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem (Immanuel Kant).”
Analisando o contexto atual da realidade brasileira no campo político, observa-se que uma parcela da população, segundo dados estatísticos (Datafolha, Veja/FSB, CNT/MDA) 30% em média, se encaixa perfeitamente na menoridade descrita pelo filósofo. Essa parcela da população também denominada Bolsonaro raiz, tem se mantido firme, fincado pé na sustentação e disseminação do discurso negacionista, do desprezo pela ciência e, sem propostas para resolução de problemas, se alimentam do caos.
Imbricado nesse contexto, eis que se torna latente, agora mais do que em outros momentos da nossa história, os seguintes questionamentos: de quais elementos, discurso e valores os professores irão se utilizar nos seus espaços de trabalho para fazer frente ao que está posto? O nosso estudante não trará para o ambiente escolar apenas o conhecimento do senso comum, o qual, convenhamos, é um ponto de partida importante e indispensável para a introdução e entendimento do conhecimento sistematizado. Ele trará consigo a negação da ciência, uma barreira difícil de romper, porque está cimentada por um discurso religioso, familiar e ideológico, sem frestas, portanto, para o tão debochado e menosprezado conhecimento científico. Como apressar o experimento, a observação empírica, como ler Machado de Assis, e travar um debate acerca dos olhos de ressaca de Capitu, se negacionistas querem respostas rápidas, descontextualizadas, sem critérios, nem pudor?
A descentralização e velocidade da informação advindas do avanço das novas tecnologias nos meios de comunicação trazem no seu bojo inúmeras possibilidades de difusão e interpretação de uma mesma realidade. Aliado a esse contexto, surgem as fake news e uso de robôs com disparos automáticos, um despropósito bem articulado.  Com o desmonte causado pelas notícias falsas, os cientistas e profissionais que se utilizam da ciência passaram a atuar em três frentes, a saber: desconstruir o discurso negacionista, denunciar e pesquisar (produzir ciência). A não ciência não se utiliza da comprovação, consequentemente se espalha mais facilmente, um desserviço. Uma parcela considerável da população brasileira faz questão de não usar o filtro, os óculos kantianos. Não é uma negação por desconhecer, é intencional!
O youtuber, fenômeno dos novos tempos, com 36 milhões de seguidores, Felipe Neto, numa entrevista ao programa Roda Viva foi questionado sobre um chamamento seu aos colegas de profissão sobre a necessidade deles também se pronunciarem politicamente. “Nesse cenário político o silêncio já não é mais uma opção, se faz necessário falar, estamos diante de um projeto fascista, de um discurso inflamado que espalha medo.” Nessa mesma entrevista, Felipe Neto chamou a atenção para os meios de comunicação, mais especificamente a CNN, por dar espaço para um debate propositalmente construído para negar, sem embasamento nem proposição, calcado no achismo. É fato que estamos assistindo e convivendo com um discurso vazio de ideias, um achismo irresponsável e inconsequente, que visa tão somente o embrutecimento de um povo e a sua subjugação. Os mentores do negacionismo têm propósitos muito claros que é a dominação política pelo viés antidemocrático.  O caminho obscurantista foi arquitetado minuciosamente e dispõe de altos investimentos. Os desafios estão postos, a democracia está encurralada!
O chamamento anteriormente citado, me remete a um texto do escritor Eduardo Galeano, “Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovakloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto deu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: - Pai, me ensina a olhar!”
Diego nos representa, precisamos urgentemente da sabedoria e esperteza desse menino. Existem coisas e fatos tão grandes, tão desproporcionais, tão urgentes que apenas um seguimento, um grupo, uma ideologia, uma classe social não dão conta. São tantas atrocidades, contra tanta gente que olhos individualmente fitados não são capazes de enxergar. Tudo o que negar a junção na busca de soluções para a sobrevivência da democracia brasileira precisa ser deixado de lado. Não é hora para o individualismo, projetos locais ou de pequenos grupos. Diego agarrou-se a todas as possibilidades e não perdeu a oportunidade de ver a grandiosidade do mar, buscou o aliado certo na hora certa. Sejamos resilientes, não aceitemos nenhuma subjugação, precisamos sobreviver com dignidade, com capacidade intelectual e moral para conviver socialmente nessa aldeia global.
Com atitudes atrozes, o governo brasileiro e seus ministros impõem um massacre aos povos indígenas, um desrespeito e uma desculturação. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em reunião ministerial realizada no dia 22 de abril de 2020, escancara seu projeto genocida para as comunidades amazônicas e especificamente os indígenas: “Vamos aproveitar a distração da impressa com a pandemia para facilitar a passagem da boiada, mudar todo o regulamento e simplificando as normas do Iphan, ministério da agricultura, ministério de meio ambiente...” um verdadeiro destroçamento ambiental. Em decorrência da fala do ministro, o senador Randolfe Rodrigues, em rede social, o tachou de criminoso. Nessa mesma reunião, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, ressaltou que odeia o termo “povos indígenas; quer, quer. Não quer, sai de ré”. O ministro não traz para o seu discurso o princípio de equidade, não quer perceber que esses povos têm suas particularidades e a coexistência dos mesmos  parte desse princípio. Como podemos ver, da chegada dos colonizados portugueses aos nossos dias, as tragédias se repetem. Caetano Veloso, na canção Um Índio, nos adverte para o fato da negação e ocultação desses povos quando são tão óbvios.
Henry Bugalho - é um youtuber brasileiro, escritor, tradutor e filósofo. O Henry também trava um debate acerca da realidade política do Brasil na atualidade. Civilização x barbárie “O debate não é, nunca foi entre as diferentes posições políticas, se é de direita ou de esquerda, se você é comunista, liberal ou conservador. O debate é se você apoia o modelo aberto de sociedade inclusivo, tolerante, de respeito às diferenças ou se você defende um modelo intolerante, excludente, bárbaro, de perseguição dos outros, de destruição de diretos civis, de destruição das liberdades individuais!” como se vê, os questionamentos são inúmeros e igualmente importantes. A hora é de convocação pela defesa de valores civilizatórios, a disputa é essa!
No jogo da comunicação, há quem diga que a oposição além de desunida e desarticulada, está aprendendo a usar as redes sociais para comunicar, em contrapartida, a situação é eficiente nesse campo e consegue alimentar sistematicamente a sua base eleitoral. Se os métodos são legais ou não, essa é outra questão. O jornalista e youtuber Guilherme Amado (revista Época), lança mão de estudos da consultoria Bites, 24/03/2020, para chamar a atenção para os seguintes fatos:  “Pela primeira vez, Bolsonaro tem oposição forte nas redes sociais e, isso se dá por grupo que ‘extrapola as fronteiras da disputa ideológica da esquerda versus direita’.” No twitter, durante uma semana, 992.631 usuários do serviço no Brasil usaram hashtags negativas para criticar o governo contra 803.522 positivas.” Bem debaixo dos nossos olhos os caminhos que iremos trilhar estão se desenhando, sendo traçados. E nós, como estamos? tal qual a Carolina do Chico Buarque?  “Lá fora, amor/ Uma rosa morreu/Uma festa acabou/ Nosso barco partiu/ Eu bem que mostrei a ela/ O tempo passou na janela/ só Carolina não viu.” Nesse momento da história, mais do que noutros, é no mundo virtual que as relações de comunicação estão se dando e com agentes diversos. Parece paradoxal, mas é nesse ambiente que o discurso negacionista toma forma e corpo. Observar e analisar espaços virtuais é o primeiro desafio no enfrentamento ao obscurantismo.
 Na busca do contraditório ao projeto nazifascista, o ator brasileiro Pedro Cardoso, no seu Instagram, faz o seguinte questionamento: “Pergunto aos economistas democratas:  onde está a nova economia que produzirá a justiça social, a liberdade e a saúde ecológica? Onde estão os cálculos e as projeções, o uso das tecnologias, os novos hábitos de consumo que farão haver futuro?” Lendo o que  Marilena Chauí, professora emérita de Filosofia da USP, escreveu sobre a utilidade da filosofia, concluo que a sua utilidade consiste em colocar o pensamento em movimento, questionar, buscar significados, abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum, não se  deixar guiar ou se submeter às ideias dominantes e aos poderes estabelecidos e, por que não, incomodar. O questionamento seria o segundo passo no enfrentamento ao obscurantismo! Busquemos maioridade!



7 comentários:

  1. Mais um excelente texto,Goretti.
    Cada dia mais admiro sua produção.

    João Maria de Medeiros

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  2. Goretti, você acabou de nos presentear com mais um texto digno de nossa atenção. Parabéns!

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  3. Mais um texto perfeito da Professsora Maria Goretti Borges. Só resta-nos dizer como Diego: Pai, me ensina a olhar!

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  4. Parabéns mais uma vez por um texto tão bem elaborado! Pois é cara amiga! Cabe a nós nesse momento tão difícil de nossas vidas e da democracia brasileira os seguintes passos: olhar com nitidez, pensar com mais criticidade, buscar cada dia mais teimosamente encontrar um caminho que nus conduza a salvação de nossa tão sonhada DEMOCRACIA!
    Entendo que da forma que caminha a política do nosso país o grande terror e meu pavor e ver a democracia ser enterrada junto aos corpos do nosso povo nesta triste PANDEMIA! Não contribui para que estivéssemos hoje nesta triste situação! Mas, como diz um antigo ditado: O POVO TEM O GOVERNO QUE MERECE!
    Beijos com afeto e carinho!

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  5. Excelente, professora, o diagnóstico político a partir de uma concepção filosófica, pensando C'ivilidade e Bárbarie' num prisma hodierno das relações no contexto político social nacional e antenada com o ciberespaço. Parabéns👏👏👏⚘

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  6. Excelente e atualíssimo texto. Emocionou-me a sua sensibilidade na belíssima citação:

    E foi tanta a imensidão do mar, e tanto deu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: - Pai, me ensina a olhar!”

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  7. Goretti, sua análise foi consistente por nos despertar para um olhar mais profundo e lúcido para nossa realidade conjuntural. A necessidade de enxergarmos essa desalentadora conjuntura político-social, a partir de um coletivo nos faculta a possibilidade concreta de assumirmos o controle do "timão" desse grande barco Brasil.E o que nos falta para navegarmos sem medo neste mar bravio? Decisão, mobilização, atuação. Nosso porto seguro só o alcançaremos quando, em nós,for renovado o encanto pela política, materializado no debate civilizado; debate para o qual seu ponto de vista, Goretti, ora explicitado, com riqueza de argumento, tem muito a contribuir por ampliar o nosso olhar. Nosso aplauso.

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