Civilidade X Barbárie
Como fazer
brotar a semeadura em solo pedregoso, como reacender a chama, dar visibilidade
ou fazer enxergar a clareza da obviedade, quando o mais conveniente, para
determinados grupos, é não permitir a passagem de qualquer raio de luz que os
levem a aceitar a realidade dos fatos? Busquemos na filosofia um pouco de
claridade para os questionamentos em pauta.
No texto, ao
tratar da temática “que é o esclarecimento?”, o filósofo prussiano Immanuel
Kant, parte da junção do empirismo com a racionalidade e faz referência ao
filtro, óculos por onde passam as informações recebidas, com as quais
caminhamos num processo de esclarecimento dos acontecimentos. A leitura da
realidade se dá pela passagem das lentes dos óculos que usamos para processar
as informações recebidas e observadas. “Esclarecimento é a saída do homem de
sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de
fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o
próprio culpado dessa menoridade, se a causa dela não se encontra na falta de
entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a
direção de outrem (Immanuel Kant).”
Analisando o
contexto atual da realidade brasileira no campo político, observa-se que uma
parcela da população, segundo dados estatísticos (Datafolha, Veja/FSB, CNT/MDA)
30% em média, se encaixa perfeitamente na menoridade descrita pelo filósofo.
Essa parcela da população também denominada Bolsonaro raiz, tem se mantido
firme, fincado pé na sustentação e disseminação do discurso negacionista, do
desprezo pela ciência e, sem propostas para resolução de problemas, se
alimentam do caos.
Imbricado
nesse contexto, eis que se torna latente, agora mais do que em outros momentos
da nossa história, os seguintes questionamentos: de quais elementos, discurso e
valores os professores irão se utilizar nos seus espaços de trabalho para fazer
frente ao que está posto? O nosso estudante não trará para o ambiente escolar
apenas o conhecimento do senso comum, o qual, convenhamos, é um ponto de
partida importante e indispensável para a introdução e entendimento do
conhecimento sistematizado. Ele trará consigo a negação da ciência, uma
barreira difícil de romper, porque está cimentada por um discurso religioso,
familiar e ideológico, sem frestas, portanto, para o tão debochado e
menosprezado conhecimento científico. Como apressar o experimento, a observação
empírica, como ler Machado de Assis, e travar um debate acerca dos olhos de
ressaca de Capitu, se negacionistas querem respostas rápidas,
descontextualizadas, sem critérios, nem pudor?
A
descentralização e velocidade da informação advindas do avanço das novas
tecnologias nos meios de comunicação trazem no seu bojo inúmeras possibilidades
de difusão e interpretação de uma mesma realidade. Aliado a esse contexto,
surgem as fake news e uso de robôs com disparos automáticos, um despropósito
bem articulado. Com o desmonte causado
pelas notícias falsas, os cientistas e profissionais que se utilizam da ciência
passaram a atuar em três frentes, a saber: desconstruir o discurso
negacionista, denunciar e pesquisar (produzir ciência). A não ciência não se
utiliza da comprovação, consequentemente se espalha mais facilmente, um
desserviço. Uma parcela considerável da população brasileira faz questão de não
usar o filtro, os óculos kantianos. Não é uma negação por desconhecer, é
intencional!
O youtuber,
fenômeno dos novos tempos, com 36 milhões de seguidores, Felipe Neto, numa
entrevista ao programa Roda Viva foi questionado sobre um chamamento seu aos
colegas de profissão sobre a necessidade deles também se pronunciarem
politicamente. “Nesse cenário político o silêncio já não é mais uma opção, se
faz necessário falar, estamos diante de um projeto fascista, de um discurso
inflamado que espalha medo.” Nessa mesma entrevista, Felipe Neto chamou a
atenção para os meios de comunicação, mais especificamente a CNN, por dar
espaço para um debate propositalmente construído para negar, sem embasamento
nem proposição, calcado no achismo. É fato que estamos assistindo e convivendo
com um discurso vazio de ideias, um achismo irresponsável e inconsequente, que
visa tão somente o embrutecimento de um povo e a sua subjugação. Os mentores do
negacionismo têm propósitos muito claros que é a dominação política pelo viés
antidemocrático. O caminho obscurantista
foi arquitetado minuciosamente e dispõe de altos investimentos. Os desafios
estão postos, a democracia está encurralada!
O chamamento
anteriormente citado, me remete a um texto do escritor Eduardo Galeano, “Diego
não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovakloff, levou-o para que descobrisse o
mar. Viajaram para o sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas,
esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia,
depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a
imensidão do mar, e tanto deu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E
quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: - Pai,
me ensina a olhar!”
Diego nos
representa, precisamos urgentemente da sabedoria e esperteza desse menino.
Existem coisas e fatos tão grandes, tão desproporcionais, tão urgentes que
apenas um seguimento, um grupo, uma ideologia, uma classe social não dão conta.
São tantas atrocidades, contra tanta gente que olhos individualmente fitados
não são capazes de enxergar. Tudo o que negar a junção na busca de soluções
para a sobrevivência da democracia brasileira precisa ser deixado de lado. Não
é hora para o individualismo, projetos locais ou de pequenos grupos. Diego
agarrou-se a todas as possibilidades e não perdeu a oportunidade de ver a
grandiosidade do mar, buscou o aliado certo na hora certa. Sejamos resilientes,
não aceitemos nenhuma subjugação, precisamos sobreviver com dignidade, com
capacidade intelectual e moral para conviver socialmente nessa aldeia global.
Com atitudes
atrozes, o governo brasileiro e seus ministros impõem um massacre aos povos
indígenas, um desrespeito e uma desculturação. O ministro do Meio Ambiente,
Ricardo Salles, em reunião ministerial realizada no dia 22 de abril de 2020,
escancara seu projeto genocida para as comunidades amazônicas e especificamente
os indígenas: “Vamos aproveitar a distração da impressa com a pandemia para
facilitar a passagem da boiada, mudar todo o regulamento e simplificando as
normas do Iphan, ministério da agricultura, ministério de meio ambiente...” um
verdadeiro destroçamento ambiental. Em decorrência da fala do ministro, o
senador Randolfe Rodrigues, em rede social, o tachou de criminoso. Nessa mesma
reunião, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, ressaltou que odeia o termo
“povos indígenas; quer, quer. Não quer, sai de ré”. O ministro não traz para o
seu discurso o princípio de equidade, não quer perceber que esses povos têm
suas particularidades e a coexistência dos mesmos parte desse princípio. Como podemos ver, da
chegada dos colonizados portugueses aos nossos dias, as tragédias se repetem.
Caetano Veloso, na canção Um Índio, nos adverte para o fato da negação e
ocultação desses povos quando são tão óbvios.
Henry Bugalho
- é um youtuber brasileiro, escritor, tradutor e filósofo. O Henry também trava
um debate acerca da realidade política do Brasil na atualidade. Civilização x
barbárie “O debate não é, nunca foi entre as diferentes posições políticas, se
é de direita ou de esquerda, se você é comunista, liberal ou conservador. O
debate é se você apoia o modelo aberto de sociedade inclusivo, tolerante, de
respeito às diferenças ou se você defende um modelo intolerante, excludente,
bárbaro, de perseguição dos outros, de destruição de diretos civis, de
destruição das liberdades individuais!” como se vê, os questionamentos são
inúmeros e igualmente importantes. A hora é de convocação pela defesa de
valores civilizatórios, a disputa é essa!
No jogo da comunicação,
há quem diga que a oposição além de desunida e desarticulada, está aprendendo a
usar as redes sociais para comunicar, em contrapartida, a situação é eficiente
nesse campo e consegue alimentar sistematicamente a sua base eleitoral. Se os
métodos são legais ou não, essa é outra questão. O jornalista e youtuber
Guilherme Amado (revista Época), lança mão de estudos da consultoria Bites, 24/03/2020,
para chamar a atenção para os seguintes fatos: “Pela primeira vez, Bolsonaro tem oposição
forte nas redes sociais e, isso se dá por grupo que ‘extrapola as fronteiras da
disputa ideológica da esquerda versus direita’.” No twitter, durante uma
semana, 992.631 usuários do serviço no Brasil usaram hashtags negativas para
criticar o governo contra 803.522 positivas.” Bem debaixo dos nossos olhos os
caminhos que iremos trilhar estão se desenhando, sendo traçados. E nós, como
estamos? tal qual a Carolina do Chico Buarque?
“Lá fora, amor/ Uma rosa morreu/Uma festa acabou/ Nosso barco partiu/ Eu
bem que mostrei a ela/ O tempo passou na janela/ só Carolina não viu.” Nesse
momento da história, mais do que noutros, é no mundo virtual que as relações de
comunicação estão se dando e com agentes diversos. Parece paradoxal, mas é
nesse ambiente que o discurso negacionista toma forma e corpo. Observar e
analisar espaços virtuais é o primeiro desafio no enfrentamento ao
obscurantismo.
Na busca do contraditório ao projeto nazifascista,
o ator brasileiro Pedro Cardoso, no seu Instagram, faz o seguinte
questionamento: “Pergunto aos economistas democratas: onde está a nova economia que produzirá a justiça
social, a liberdade e a saúde ecológica? Onde estão os cálculos e as projeções,
o uso das tecnologias, os novos hábitos de consumo que farão haver futuro?” Lendo
o que Marilena Chauí, professora emérita
de Filosofia da USP, escreveu sobre a utilidade da filosofia, concluo que a sua
utilidade consiste em colocar o pensamento em movimento, questionar, buscar
significados, abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum, não
se deixar guiar ou se submeter às ideias
dominantes e aos poderes estabelecidos e, por que não, incomodar. O
questionamento seria o segundo passo no enfrentamento ao obscurantismo! Busquemos
maioridade!
Mais um excelente texto,Goretti.
ResponderExcluirCada dia mais admiro sua produção.
João Maria de Medeiros
Goretti, você acabou de nos presentear com mais um texto digno de nossa atenção. Parabéns!
ResponderExcluirMais um texto perfeito da Professsora Maria Goretti Borges. Só resta-nos dizer como Diego: Pai, me ensina a olhar!
ResponderExcluirParabéns mais uma vez por um texto tão bem elaborado! Pois é cara amiga! Cabe a nós nesse momento tão difícil de nossas vidas e da democracia brasileira os seguintes passos: olhar com nitidez, pensar com mais criticidade, buscar cada dia mais teimosamente encontrar um caminho que nus conduza a salvação de nossa tão sonhada DEMOCRACIA!
ResponderExcluirEntendo que da forma que caminha a política do nosso país o grande terror e meu pavor e ver a democracia ser enterrada junto aos corpos do nosso povo nesta triste PANDEMIA! Não contribui para que estivéssemos hoje nesta triste situação! Mas, como diz um antigo ditado: O POVO TEM O GOVERNO QUE MERECE!
Beijos com afeto e carinho!
Excelente, professora, o diagnóstico político a partir de uma concepção filosófica, pensando C'ivilidade e Bárbarie' num prisma hodierno das relações no contexto político social nacional e antenada com o ciberespaço. Parabéns👏👏👏⚘
ResponderExcluirExcelente e atualíssimo texto. Emocionou-me a sua sensibilidade na belíssima citação:
ResponderExcluirE foi tanta a imensidão do mar, e tanto deu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: - Pai, me ensina a olhar!”
Goretti, sua análise foi consistente por nos despertar para um olhar mais profundo e lúcido para nossa realidade conjuntural. A necessidade de enxergarmos essa desalentadora conjuntura político-social, a partir de um coletivo nos faculta a possibilidade concreta de assumirmos o controle do "timão" desse grande barco Brasil.E o que nos falta para navegarmos sem medo neste mar bravio? Decisão, mobilização, atuação. Nosso porto seguro só o alcançaremos quando, em nós,for renovado o encanto pela política, materializado no debate civilizado; debate para o qual seu ponto de vista, Goretti, ora explicitado, com riqueza de argumento, tem muito a contribuir por ampliar o nosso olhar. Nosso aplauso.
ResponderExcluir