A
chuva floriu meu deserto coração
Amanheço
o dia com pouco ar nos pulmões. Na escolha da roupa para ir à farmácia comprar
o que chamo de meu pulmão ambulante deparo-me com uma diversidade de camisetas
pretas. Apesar do meu deserto estado de espírito, opto pelo azul com bege; uma
tentativa de colorir de vida meus dias sombrios.
No
caminho, uma parada no Popular para fortalecer a carcaça. Na fila, a vida já me
sorri com os lindos olhos de uma criancinha tão meiga, que não cessa de me
chamar de titia e enche de ternura meu dia. Quem é? Não sei. Algum anjo enviado
do céu para alegrar almas contritas talvez.
Na
saída do almoço, uma chuvinha tímida cai no solo santa-cruzense. E eu,
incrédula, arrisco-me a sair naquela garoa porque a farmácia poderia fechar
caso eu esperasse, e meus pulmões certamente não esperariam para me
surpreenderem sem medicação. Foi assim que a surpresa enxurrou meu dia. A cada
passo, a chuva engrossava; o que se via nas paradas do centro da cidade eram
olhos esbugalhados, incrédulos talvez, como eu, de verem o que estavam a
presenciar, a se deliciar, a se encantar. Nossa terrinha, tão quente e assolada
pela seca há tanto tanto tempo, finalmente recebeu a visita fortuita da
chuvinha de verão.
Passo
na farmácia, compro a bombinha e arrisco-me novamente na chuva, como o brotinho
da crônica do Paulo Mendes Campos, apesar de que meus recém completos 32 anos
me indiquem que não tenho mais idade para isso. Sim, a despeito de tudo isso e
da blusa bege que certamente transpareceria na chuva, saio pelas calçadas como
quem ganhou na loteria. No entanto, é uma espécie de sorte diferente. É a sorte
de estar viva para poder desfrutar desse momento sempre célebre, quando a chuva
nos dá o ar da sua graça. É a sorte de conseguir enxergar em meus conterrâneos
aqueles mesmos severinos presentes em outras crônicas, em outros carnavais, mas
que preservam o mesmo olhar contemplativo de quem não perdeu o dom de se
encantar com a chuva, com a natureza, com Deus.
Meus
ouvidos andam aguçados aos rumores que se fazem pelo caminho de volta ao meu
Paraíso. Uns dizem: “Foi Deus que se lembrou de nós e mandou essa chuva”.
Outros, com um espirito imprecatório, relembram o dilúvio e aguardam acuados
dentro das lojas da cidade, comentando baixinho que pode ser finalmente o juízo
de Deus sobre nós. Alguns ainda esquecem de observar o espetáculo da chuva e
acham mais interessante notar a transparência da roupa alheia ou a ignorar o
fato de que, com tantos pontos de parada, algumas pessoas ainda insistem em
continuar sua trajetória debaixo de chuva. As mulheres, como sempre,
preocupadas com suas chapinhas, me encaram como um ar de reprovação e às vezes
zombaria. Eu a tudo observo e sigo meu caminho sorrindo, pensando em formato de
crônica como digo a alguns amigos.
Os
trovões, por sua vez, deram o tom da sua graça. E por mais que não estejamos
acostumados e de certo modo nos assombremos quando eles apareçam, sempre nos
regozijamos, pois é como se eles viessem como uma aliança, que marca o
compromisso do fim da estiagem e dão mais seriedade à chuva que poderia parecer
um caso passageiro, mas com eles, parecem relacionamento sério com a nova
estação. E não raro, com as primeiras gotas e os primeiros trovões, já tem
gente planejando o plantio, na esperança de comermos bastante milho e feijão
verde no São João.
Na
travessia da ponte, o cenário não poderia ser mais belo. Os coqueiros e árvores
que na ida observei cinzas, já dançavam na chuva todos verdinhos, uma graça de
se ver, contrastando com o céu cinza escuro. Logo após, crianças de bicicleta
rodopiando e reverenciando esse milagre. Uma delas grita meu nome! E nem era
preciso dizer mais nada. Nossos olhos se encontram e celebramos felizes a
bênção da chuva, que a essa altura já engrossara e descia convicta pelas ruas
do bairro, lavo meus pés, minha alma, minha dor.
Chego
na minha casa com o pulmão tão apertado pela mudança climática, mas também tão
feliz, pois desta feita o aperto é por um bom motivo. Abro a bombinha. Uso-a.
Respiro fundo e volto para o portão a fim de continuar me deleitando com o
espetáculo da vida. E foi assim que a chuva floriu meu deserto coração.
Cecília
Nascimento
28/12/2016
– 14h31min.
Uma das melhores crônicas que já li em todo o 2016 Cecília Nascimento Parabéns uma bela crônica
ResponderExcluirUma das melhores crônicas que já li em todo o 2016 Cecília Nascimento Parabéns é uma bela crônica.
ResponderExcluir