terça-feira, 5 de maio de 2015

Mais raparigueiro do que eu - Carlos Fialho



Um brinde aos bestiais paredões de som e às bestas que os montam em seus veículos 4×4 patas.
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Mais raparigueiro do que eu


Senhoras e senhores, é com muito pesar que venho até vocês anunciar nosso retumbante fracasso. É triste dizer, mas falhamos clamorosamente como sociedade. Permanecemos estagnados numa fase embrionária de nosso processo civilizatório e ainda nos faltam perspectivas de avanço a médio, ou mesmo longo, prazo. Houve algum erro não identificado no exato momento em que nossos antecessores nos transmitiam aquela parte sobre nosso direito terminar onde começa o do outro, sabem? Enfim, todo aquele papo de respeito ao próximo, de existirem certos limites ou de tratar as pessoas como nós mesmos gostaríamos de ser tratados.

É fácil constatar isso em face das evidências de que alguns de nós têm se comportado muito mal. Uma perigosa combinação de individualismo, vaidade e falta de educação produziram uma noção distorcida de cidadania que lhes faz acreditar que o correto é a diversão desmedida, o êxtase absoluto, histérico e barulhento. Não se contentam em se fazer concessões simples, no prazer sereno que satisfaz, no compartilhamento equilibrado de sensações boas. Não. Isso não é o bastante. Precisam que o mundo saiba de sua euforia. Querem sujeitar todas as outras pessoas da terra ao seu estado de espírito de superlativa alegria e embriaguez. Almejam evangelizá-las de acordo com as suas preferências e opiniões, gostos e opções para, no caso de resistência, identificar com dedo em riste os estraga-prazeres e acusá-los de invadir seu espaço sagrado com silêncio opressor, discrição petulante e paz autoritária.

São os adoradores dos paredões de som. Têm governado esse Estado cheio de faixas de areia e borboletas dizendo adeus. Só reconhecem a palavra barulho se acompanhada do adjetivo ensurdecedor. Aproveitam-se da anarquia estabelecida nesta capitania do Rio Grande para tomar o poder e exercê-lo com mão de ferro, agressividade e a encorajadora sensação de impunidade. São eles que nos perseguem a cada praia, ignorando completamente a necessidade de convivência harmoniosa com os demais.

Nossa capital está cheia de gente assim. Indivíduos que tentam atingir o nirvana sem serem importunados com qualquer notícia que lhes faça recordar da falível condição de mortais. Eles param seus carros em garagens alheias ou em vagas de deficientes como fez o advogado cidadão em imagem conhecida na Internet. Eles ligam suas potentes caixas de som em altíssimos decibéis com o mais novo hit do verão. Eles arremessam lixo das janelas dos seus carros e sentem-se pessoalmente ofendidos caso alguém os repreenda ou chame a atenção para seus erros. Também não adianta reclamar, pois você pode ganhar uma agressão física que se soma à moral já abalada.
Por tudo isso, resolvi desistir. Se não pode vencê-los, junte-se a eles. Não é assim que se faz? Pergunte à maioria dos vereadores ou deputados que eles vão confirmar. Aderi aos paredões. Parei de tentar fugir, até porque eles ficam repetindo pra mim sem parar: “Ai se eu te pego!” Pois é. Eles me pegaram. Foi o jeito. Neste verão, tenho frequentado ambientes cujo som ambiente é gerado por essas máquinas monstruosas.

Troquei os habituais sentimentos negativos de outros anos, como o desejo da morte súbita por combustão espontânea dos malditos desordeiros ou que fossem deixadas amostras de antrax em seus invocados coolers, pela tentativa de compreensão. O que tenho feito, sem muito sucesso, é tentar conhecê-los de perto para refletir sobre seu comportamento, as razões que os levam a agir de tal forma e o porquê de o péssimo gosto musical vir acompanhado de surdez congênita. Não tenho encontrado muitas respostas e novas perguntas se multiplicam como Gremlins na água ou periguetes de escova no cabelo ao redor das caminhonetes e 4×4.

Minhas primeiras perguntas não foram ouvidas, pois o ruído provocado pela mistura de sons e ritmos sofríveis de um evento à beira-mar que reunia metade do PIB do RN impedia qualquer um de conversar. Depois de muito me esforçar, consegui me comunicar com o dono de um dos mais potentes paredões do planeta, valendo-me da ajuda de mímica e de um vocabulário rudimentar inferior a uma centena de palavras. Porém, não logrei êxito em minha pesquisa, pois, ao perguntar se ele não se importava em incomodar os outros, respondeu candidamente: “Outros? Quem são os outros?” Com alguma dificuldade, expliquei que os outros são as pessoas que vivem em outras casas, que não são seus amigos, que coincidem na mesma cidade, praia, bairro, vizinhança e que, talvez, não gostem das mesmas coisas que ele. Surpreso com a existência dos “outros”, o jovem playboy natalense me disse: “Ah, esses outros? Que se fodam!” Esta última frase me pareceu a mais perfeita síntese definidora e ilustrativa do fracasso da nossa sociedade.

Ao fundo, tocava o grande sucesso do verão 2012, “mais raparigueiro do que eu, só papai”, música incessantemente ouvida por todos nós nas últimas semanas. Menos pela Luíza (aquela sortuda!) que estava no Canadá.

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