Como
homenagem aos 100 anos de Jorge Amado, a atual adaptação de sua obra-prima,
“Gabriela”, pode ser considerada irregular: além de enfrentar a concorrência
desleal da versão anterior, um clássico da teledramaturgia brasileira, a nova
intérprete da personagem, Juliana Paes, se mostra madura demais para o papel –
uma escolha mais adequada teria sido Débora Nascimento, a Tessália de “Avenida
Brasil” – em comparação com Sônia Braga,
que com seu frescor e brejeirice virou a personificação definitiva da sensual
cozinheira baiana na imaginação dos brasileiros (e mesmo dos estrangeiros, que
a viram defender o papel com a mesma competência no filme de 1983). Outros
problemas são um Nacib um tanto desconfortável, com uma perene “cara de bêbado” (comparado aos
intérpretes mais famosos do sírio, Armando Bogus e Marcelo Mastroianni,
Humberto Martins perde feio, seja em relação ao vigor do primeiro ou ao charme
lânguido do segundo), um Ramiro Bastos calcado em ACM (é só observar seu jeito
autoritário, sua voz ríspida, sua cabeça quase calva, seu bigode e até o tipo
de terno que usa para se ter certeza que Antônio Fagundes acintosamente copia a
figura do mais polêmico político baiano na performance do principal vilão
masculino da trama), um Tonico caricato (definitivamente o personagem não
precisa daquele queixo pronunciado) e algumas concepções distorcidas (a
personagem Zarolha virou uma vilã, contrariando não só o livro como seu perfil
inicial na adaptação, onde era mostrada como uma prostituta um pouco ingênua e
romântica, que lutava para ser reconhecida como uma mulher plena, capaz de amar
e de demonstrar sua fé). O que salva a trama são as boas interpretações dos
atores coadjuvantes, como Vanessa Giácomo (Malvina, filha de “coronel” que,
provavelmente por ter herdado o caráter voluntarioso do pai, quer ser dona do
próprio destino), Rodrigo Andrade (Berto, psicopata que, na verdade, é
consequência direta dos desmandos do coronelismo), Marco Pigossi (Juvenal,
jovem sensível que, apesar de ser filho de coronéis, teve oportunidade de
estudar e vê o mundo de forma diferente, desafiando as regras de seu meio),
Giovanna Lancelotti (Lindinalva, vítima do machismo da época que, mesmo
sofrendo, tenta tocar sua vida) e Mateus Solano (que embora não siga a caracterização de Mundinho
Falcão no livro, descrito como loiro e de bigodes, transmite com perfeição a
força, a coragem aliada a uma certa prepotência e o romantismo sem concessões
que o caracterizam, fazendo com que esses aspectos aparentemente antagônicos do
personagem soem convincentes). E principalmente Laura Cardoso, que rouba a cena
numa atuação crepuscular como Doroteia, a beata implacável que, crendo agir em
nome da moral e dos bons costumes (apesar de alguns veículos de comunicação anunciarem
que em breve se revelará que ela foi prostituta) não hesita em usar a violência
e a intriga para perpetuar seu poder. Também merece destaque o desempenho de
alguns veteranos, como Ary Fontoura, Chico Díaz e Bete Mendes.
Contudo,
existe um outro aspecto nessa produção global que, embora não seja tão
evidente, também faz com que ela mereça a audiência do público: o contexto
histórico e social da história e suas diferenças em relação aos dias de hoje.
Uma das
primeiras coisas que saltam aos olhos do telespectador é o aspecto plástico:
exceto quando entram em cena os pobres ou retirantes, o figurino é de uma
elegância impecável, e pode-se dizer o mesmo da arquitetura da Ilhéus dos anos
20, o que poderia ser traduzido como um certo saudosismo. Contudo, como é de
praxe nas obras do mais famoso escritor baiano, basta uma análise mais
aprofundada para se perceber que esse refinamento é apenas aparente: como
demonstra a própria sequência inicial da trama (apesar dela não estar presente
no livro), ao retratar como os coronéis do cacau conquistaram suas terras
matando agricultores e expulsando suas famílias, aquela é uma época regida por
regras arbitrárias e violentas, que custaram a vida de não poucos inocentes. E
esse autoritarismo permeia as mais diversas situações, contemplando desde o
poder dos fazendeiros sobre a vida de seus filhos e netos, determinando com
quem deveriam se casar e mesmo seu futuro profissional, até a repressão a todos
aqueles que os desafiassem, inclusive por meio do assassinato (o coronel Ramiro
faz questão de dizer com certo orgulho que “no seu tempo as coisas se resolviam
na bala”), passando pela manipulação da justiça conforme as suas conveniências.
Mas nada reflete mais esse quadro do que a situação das mulheres: obrigadas a
seguir regras inflexíveis determinadas por homens e fiscalizadas pelas matronas
irrepreensíveis, tinham de se encaixar nos papéis de “mulheres honestas” ou
“damas de família”, e aceitar com resignação o poder deles sobre elas, com
todas as consequências que isso acarretava (“dividir” os maridos com
prostitutas, “téudas” e “manteúdas”, sujeição à violência física deles ou de
seus pais e impossibilidade de terem independência financeira ou profissional,
bem como restrição às suas atividades profissionais – exceto se fossem
doceiras, costureiras, parteiras ou, se procedessem de famílias de maior poder
aquisitivo, professoras). E ai de quem desse um “mau passo”: mesmo se fosse
levada a isso por necessidade ou tivesse sido coagida por algum noivo ou
namorado, tal mulher era considerada “culpada”, ganhava má reputação e virava
uma espécie de “pária”, por não ter “lutado até a morte” e ter “entregado seu
maior tesouro”, sendo desprezada pelas “virtuosas” e suas famílias. E quando
(como geralmente era o caso) eram pobres, ninguém as ajudava e eram obrigadas a
se virar como podiam, muitas vezes indo bater no único lugar onde não lhes
fechavam as portas: os bordéis, onde se sujeitavam aos desejos dos poderosos.
Existe até uma expressão corrente na minissérie (a ponto de ter virado tema de
piadas e comentários na Internet) que mostra o quanto as mulheres eram vistas
como objetos pelos homens: quando se referem a ter relações sexuais, as
mulheres “decentes” se deixam “usar” por seus maridos. A esse respeito, merecem
destaque as histórias de dona Sinhazinha (Maitê Proença) e Lindinalva: a
primeira, uma mulher sensível e virtuosa, casada com um homem bruto, violento e
nada carinhoso, conhece o amor nos braços do sensível dentista Osmundo (Erik
Marmo), mas, vítima da vigilância das beatas – que teoricamente eram suas
amigas –, tem sua história descoberta por elas e é assassinada junto com o
amante pelo marido; a segunda, após ser desonrada pelo noivo, tem o seu noivado
rompido por Doroteia, avó dele, que chega à conclusão de que por não ter se
“guardado” ela não era mais digna de figurar na família (claro que o fato dela
ter perdido os pais e o negócio da família deve ter pesado na decisão) e,
rejeitada por sua própria madrinha (que depois até diz que o rapaz não teve
culpa, e sim ela, por ter “cedido”), é forçada a se prostituir, e chega a
sofrer uma tentativa de assassinato por parte dele, mais uma vez instigado pela
velha, quando descobre que ela iria fugir com o irmão dele. A hipocrisia também
é um elemento marcante na narrativa, e um exemplo disso são as irmãs Dos Reis,
doceiras solteironas que posam de virtuosas mas são informantes de Doroteia (e
portanto cúmplices de suas maldades) e roubam dinheiro da Igreja. Imersos nessa
teia de acontecimentos, os habitantes da cidade, mesmo os mais pobres que são
usados como “bucha de canhão” nas roças de cacau ou como empregados mal-pagos,
não conseguem se desvencilhar dela, e esse arranjo “natural” só será perturbado
com a chegada de dois forasteiros: Mundinho Falcão, carioca rico que se torna exportador
de cacau e, incorformado com o atraso econômico e político da cidade, decide
usar o seu dinheiro para acabar com o poderio dos coroneis, especialmente
depois que se apaixona por Gerusa Bastos, neta do seu maior inimigo; e
Gabriela, retirante e cozinheira habilidosa que, por seu passado miserável
(incluindo-se aí uma iniciação sexual traumática por um tio), é dona de seu
próprio destino, deita-se com quem quer e não aceita ser propriedade de
ninguém, mesmo se isso a ajudasse a ter estabilidade financeira. Nas palavras
do próprio Jorge Amado, “foi com ela que começou a libertação da mulher na zona
de cacau”, e no livro isso transparece na cena da folia de Reis, quando
Gabriela, a essa altura casada com Nacib e “senhora da sociedade”, desafia as
regras e se junta ao povo na comemoração, e seu exemplo é seguido por Gerusa.
Outros passos dados nessa direção, mais adiante, serão a condenação do marido
de dona Sinhazinha e a derrota política dos coronéis.
Diante de
tudo que foi descrito, a sociedade atual parece ser bem mais “evoluída”: após
alguns reveses, a censura desapareceu nominalmente do Brasil, e os “crimes de
honra” e os “apedrejamentos morais” não contam mais com os aplausos da
sociedade. A estrutura do Judiciário também é mais independente, as leis estão
sendo mais respeitadas e, principalmente, as mulheres são donas de seus
narizes, podendo ter a profissão e o parceiro que quiserem, chegando mesmo à
presidência da República. O fato de alguma delas perder a virgindade sem se
casar também não restringe automaticamente sua vida. Sem dúvida, a sociedade
está mais igualitária, mas será mesmo que não existem resquícios daquela época
nos dias de hoje?
Infelizmente,
existem. Para começo de conversa, a miséria ainda é uma característica marcante
no Brasil, bem como a existência dos retirantes: com frequência um número
razoável de Gabrielas, Clementes e Fagundes deixam a zona rural, castigada por
secas e falta de recursos para manter safras e colheitas, para tentar a sorte
nas cidades grandes, alimentando o crescimento das favelas e se sujeitando a
todo tipo de dificuldades para conseguir seu sustento. Tampouco a pobreza
deixou de ser utilizada pelos políticos como instrumento para manipulação de
interesses, através de desvio de verbas, perpetuação de “clãs” no poder e
funcionamento precário dos direitos sociais básicos, e embora mais raros, a
redução de pessoas à situação análoga ao trabalho escravo e os assassinatos de
dissidentes políticos ainda ocorrem em recantos mais distantes do Brasil. O
machismo e a violência de caráter sexual também não desapareceram de todo, e
eles se manifestam principalmente através da prostituição infantil, no
espancamento e assassinato de homossexuais (que, na opinião de alguns, merecem
passar por isso tendo em vista a vida que “escolheram”) e, no que se revela sua
maior ligação com o romance e a minissérie, nos abusos domésticos cometidos
contra mulheres por seus próprios companheiros e parentes, que compreendem
humilhações verbais, agressões físicas e até assassinatos, com a desculpa de
que “foi por amor”. Até a fofoca ganhou um incremento perverso na era da
Internet, pois as redes sociais podem ser usada para difamar e estigmatizar alguém, principalmente jovens,
através da divulgação de vídeos e fotos, que ficam registrados nos arquivos de
todas as pessoas que os baixarem. Prova que uma adaptação contextualizada do
romance não seria algo tão impossível.
Mas esse
quadro não deve desanimar ninguém, e sim estimular o empenho tanto para mudar o
mundo quanto para ler o romance, pois só analisando os erros do passado
poderemos construir um futuro melhor. E (por que não?) continuar acompanhando a
minissérie, de preferência torcendo para que a cena final da versão de 1975,
onde pessoas humildes pediam a bênção a Mundinho Falcão (querendo dizer que
tudo mudara para que nada tivesse mudado) não seja repetida em 2012.
Renan II de Pinheiro e Pereira.
DR. RENAN RESENHA GABRIELA NA APOESC E FAÇO O MEU COMENTÁRIO. Excelente resenha, meu caro Renan! Concordo 100% com o por Vosa Senhoria aqui dito! Gostaria, entretanto, de acrescentar uma observação: conheço essa obra nas duas linguagens, a literária e a cenematográfica, e digo-lhe, não me sentiria confortável se os desempenhos dos atuais artistas fossem exatamente iguais (uma cópia fiel) aos de seus pares das filmagens pretéritas. Que Juliana Paes não chega aos pés de Sônia Braga, é um fato! O diabo é que a gente sempre faz essa comparação! E isso não é bom! Existe um bicho chamado releitura! Precisamos estar atentos a esse detalhe! Mas o Doutor Renan tem as suas razões!
ResponderExcluirNailson, não digo que os desempenhos têm de ser iguais (tanto que reconheci que mesmo não correspondendo à descrição do personagem no livro Mateus Solano criou um Mundinho excelente, melhor que o primeiro cogitado pela Globo, Max Fercondini - que tinha o tipo físico ideal - teria feito), mas é inegável que Juliana Paes é muito madura para o papel. Existem várias atrizes que se aproximam mais do papel e poderiam ter sido ao menos testadas; Maria Flor, Solange Gomes, Nanda Costa, a própria Vanessa Giácomo e Débora Nascimento, entre outras.
ResponderExcluirAh, e não gosto de releituras: geralmente elas pioram o produto, como foi o caso da regravação de Rita Ribeiro de "É impossível acreditar que perdi você". A música é uma balada, e ela a "assassinou" ao transformá-la num reggae.
Renan, adorei sua resenha, muito bem escrita e elaborada, assisti a todos os capítulos de Gabriela e pretendo ler o livro o quanto antes. No meu curso de Letras, criticaram demais o escritor Jorge Amado, considerado um escritor menor para muitos, mas me surpreendi em cada capítulo da trama, achei tudo genial, desde a atuação do elenco, como a fotografia, figurino, cenários, para mim estava tudo impecável e concordo com Nailson, sou a favor das releituras, até porque, os clássicos, quando revisitados, ganham uma nova versão de acordo com o contexto histórico do leitor/espectador, pois os valores vão mudando e também os atores e diretores acabam sendo influenciados pela época em que vivem.
ResponderExcluirParabéns pelo espaço e pela resenha, grande abraço! Joyce
Renan, adorei sua resenha, muito bem escrita e elaborada, assisti a todos os capítulos de Gabriela e pretendo ler o livro o quanto antes. No meu curso de Letras, criticaram demais o escritor Jorge Amado, considerado um escritor menor para muitos, mas me surpreendi em cada capítulo da trama, achei tudo genial, desde a atuação do elenco, como a fotografia, figurino, cenários, para mim estava tudo impecável e concordo com Nailson, sou a favor das releituras, até porque, os clássicos, quando revisitados, ganham uma nova versão de acordo com o contexto histórico do leitor/espectador, pois os valores vão mudando e também os atores e diretores acabam sendo influenciados pela época em que vivem.
ResponderExcluirParabéns pelo espaço e pela resenha, grande abraço! Joyce