Entre minhas características mais marcantes, existem
três que os meus amigos mais próximos percebem sem dificuldades: meu apreço por
Frank Sinatra, minha aversão pela banda Calypso e a mais antiga e polêmica –
minha admiração por Getúlio Vargas, que vem desde a infância e já me rendeu um
quinhão de aborrecimentos e incompreensões, mas também me proporcionou
alegrias. Uma delas foi o episódio que irei contar agora, aproveitando que
Getúlio, apesar de nunca ter saído de cena, está novamente em evidência devido
ao lançamento de sua “biografia definitiva” e da igualmente controversa votação
para “o maior brasileiro do século” promovida pelo SBT: meu encontro com seu
último ajudante de ordens, o comandante Hernani Fittipaldi, piloto-fundador da
Aeronáutica brasileira, no dia 18 de setembro de 2004.
Tudo começou um pouco antes, quando, recém-formado e
querendo relaxar dos estresses de integrar a comissão de formatura da minha
turma, aceitei o convite de meu amigo e colega Carlos Emerenciano, sobrinho do
senador Garibaldi Alves Filho, para passar uns dias com ele em Brasília.
Cheguei à capital federal cinco dias antes, numa segunda, e depois de me
hospedar numa pousada próxima ao Santuário Dom Bosco, dediquei-me por uma
semana a conhecer seus principais prédios e monumentos. Logo no dia seguinte
fui conhecer a Praça dos Três Poderes, e depois de assistir uma sessão no STF
fui me encontrar com ele no gabinete de seu tio para esperar por ele para
jantarmos, quando me deparei com uma revista chamada “Sras. e Srs.” na sala de
espera com a manchete “Um uísque antes, um tiro depois”, onde descrevia uma
conversa com o comandante Fittipaldi, identificado como uma das últimas pessoas
que viram o presidente com vida antes do tiro no coração. O assunto me
interessou e comecei a folhear a revista, mesmo que a maioria das revelações da
reportagem e o próprio comandante não fossem desconhecidos para mim: a primeira
vez que o vira foi numa entrevista dada ao programa “Jô Soares onze e meia”, em
1998, e ainda o veria mais duas vezes, num depoimento para o “Fantástico” em
1999 e num documentário sobre os últimos dias da Era Vargas intitulado “Os 19
dias que abalaram o Brasil”, exibido na TV Escola em 2000. Por todos esses
programas, já sabia que o agora coronel Fittipaldi era gaúcho, estudara na
juventude para ser piloto de aviões e conhecera o presidente Vargas aos 19
anos, ainda durante o Estado Novo, num jantar em que ambos participaram no Rio
de Janeiro. Quando lhe contara que era cadete na escola do Realengo e acabara
de receber o espadim, uma das etapas para realizar seu sonho de ser piloto de
aviões, ele elogiou sua decisão, especialmente porque estava em vias de criar o
Ministério da Aeronáutica. O rapaz acabou por se integrar ao Ministério e anos
depois, numa ocasião em que voava para o Rio Grande do Sul, aproveitou que
estava perto da Fazenda onde Getúlio se refugiara após ser deposto, em Itu, e
fora visitá-lo para lhe agradecer pelo conselho e demonstrar sua solidariedade.
Daquele dia em diante, passou a ser considerado pelo ex-presidente como um
amigo e o visitou sempre que pôde na fazenda, até que, quando do seu retorno ao
poder, foi convidado por ele a ser seu ajudante de ordens, função que exerceu
até o dia de sua morte. E que testemunhou ativamente os acontecimentos daquele
fatídico agosto, chegando a participar da reunião ministerial do dia 23,
mantendo com ele uma rápida conversa após seu encerramento (ocasião em que seu
chefe tomou o citado uísque), bem como que estava presente no palácio do Catete
quando o tiro foi ouvido.
Todos esses fatos eram referidos pela reportagem, mas
o que me chamou a atenção foram duas coisas: a revelação de que ele estava
escrevendo um livro sobre a amizade que travaram e que ele morava em Brasília,
chegando mesmo a identificar a rua onde residia. Animado com o que lera, assim
que Carlos foi me encontrar pedi permissão para ficar com a revista e, depois
que ele me autorizou, levei-a comigo. Já na pousada, reli a matéria e, por mera
curiosidade, procurei numa lista telefônica se o número do comandante constava
lá, e descobri que não só ela possuía seu telefone e endereço completo como
que, segundo um mapa da cidade presente na publicação, ele morava na segunda
avenida paralela à do santuário, na mesma “asa”, de forma que não era tão
distante de onde eu estava. Fiquei
eufórico com a notícia e copiei os dados num papel, sem saber bem o que ia
fazer com aquela descoberta.
Durante dois dias não comentei aquilo com ninguém, e
procurei me concentrar em outras coisas, como conhecer outros locais da cidade.
Um deles foi o Memorial JK, que não foi a melhor opção para me dissuadir das
“estranhas ideias” que começavam a se insinuar em minha mente, já que entre
outras coisas ele possui um retrato do presidente Juscelino Kubitscheck junto
ao presidente Vargas numa de suas galerias. Cada vez mais o pensamento de
aproveitar aquela “oportunidade de ouro” que o destino me dera e pelo menos
tentar um contato com alguém que privara da intimidade de uma pessoa que desde
os 8 anos era uma das minhas referências em termos de brilhantismo intelectual
e competência administrativa – ainda que eu deva reconhecer que nem todos os
seus métodos seriam viáveis hoje em dia – se fortalecia, mas junto com o desejo
de torná-lo realidade vinha o receio: não seria loucura abordar “do nada” um
homem de 84 anos que nunca vira, mesmo por telefone, e pedir-lhe para visitá-lo
ou mesmo ter uma simples conversa? Além disso, mesmo que ele me parecesse uma
pessoa simpática, nem sempre matérias televisivas são fieis à realidade, e eu
era consciente que muitos gaúchos, principalmente os mais velhos, não eram
simpáticos a nordestinos. Ao mesmo tempo, a semana passava, e o dia do meu
retorno a Natal ficava cada vez mais próximo. Por isso resolvi me abrir com
Carlos e perguntar-lhe sua opinião sobre o que eu devia fazer, e para meu
espanto, visto que ele é fã do maior inimigo de Getúlio, Carlos Lacerda (figura
por quem sempre tive aversão, tanto que o considero uma das figuras mais
detestáveis da história do Brasil junto com a Marquesa de Santos), ele me disse
que poderia ser interessante procurá-lo, desde que antes eu lhe telefonasse a
fim de “sentir o ambiente” e ver se seria possível nos encontrarmos. E foi o
que decidi fazer.
No dia seguinte saí da pousada em torno de 8h15
decidido a primeiro chegar ao prédio onde o comandante morava, pois queria
conhecer bem a avenida, verificar se havia algum restaurante por perto onde
pudéssemos nos encontrar, caso ele não me permitisse entrar no seu apartamento,
e só então lhe telefonaria. Assim, atravessei as avenidas até chegar à do meu
destino e comecei a caminhar, mesmo que não me parecesse fácil: do local onde
eu estava até o prédio dele eram 10 quadras, e todas as pessoas a quem eu pedia
informações me alertavam de que a distância era muito longa, talvez uns 10 km.
Como outra de minhas características notórias também é a teimosia, decidi
tentar o percurso assim mesmo, pois achava que dessa maneira seria mais fácil
eu localizar algum restaurante próximo de seu prédio que fosse um local
adequado para um encontro, mas em 40 minutos de caminhada só consegui percorrer
5 quadras. Percebendo que naquele ritmo só chegaria ao prédio dele
relativamente tarde, decidi apenas lhe telefonar e voltar para a pousada, e, tomei
o caminho de volta um pouco frustrado. Quando já estava relativamente perto, às
9h10, aproximei-me de um orelhão e, depois de respirar fundo, disquei o seu
número e após algumas chamadas, uma moça atendeu. Pedi-lhe para falar com o
comandante Fittipaldi e ela foi chamá-lo. Assim, depois de tantas hesitações,
chegara a hora do “tiro no escuro”, e eu ignorava o que ocorreria, já que a
única coisa que parecíamos ter em comum é que eu, recém-formado, tinha a mesma
idade com que ele se formara, 22 anos, e isso não me parecia um crédito
suficiente para que ele me dignasse alguns minutos de sua atenção. Mas, o que
eu teria a perder além dos créditos do cartão telefônico?
Pouco depois, ouvi um alô falado pela mesma voz suave
e com um discreto sotaque gaúcho que eu ouvira nas três ocasiões já
mencionadas, perguntando quem era. Respondi-lhe mais ou menos assim:
- Coronel, meu nome é Renan, tenho 22 anos, sou
potiguar e estou em Brasília. Estou lhe telefonando porque já vi o senhor no
“Jô Soares 11 e meia”, no “Fantástico” e no documentário “Os 19 dias que
abalaram o Brasil”. Estou lhe telefonando porque sou getulista desde os 8 anos
de idade e li sua entrevista para a revista “Sras. e Srs.”.
- Mas que coisa bonita – respondeu-me o velho
aeronauta em tom simpático, e isso me animou.
- Tenho percebido que o senhor o admira muito e se
empenha em manter a memória dele.
- Sim, sempre faço o possível para que Dr. Getúlio
seja lembrado. Você mora aqui?
- Não, coronel, moro no Rio Grande do Norte e devo
voltar para lá na segunda-feira, até já comprei minha passagem – a resposta
traía uma certa angústia, no caso a do sonhado encontro não poder se realizar.
Até que, poucos segundos depois, ele me perguntou:
- Você pode vir aqui em meu apartamento? Se você puder
perder uma meia hora posso lhe mostrar algumas coisas que estou escrevendo, e
não posso sair daqui porque minha mulher tem Alzheimer e precisa da minha
presença.
- Claro. Sei onde é o seu endereço e chegarei aí o
mais depressa possível – o fato de eu já estar próximo da pousada não queria
dizer nada, afinal eu estava tendo a chance de realizar aquele que tinha sido o
meu “sonho impossível” durante toda a semana. Com certeza eu não a
desperdiçaria, quando tinha sido o próprio comandante que me convidara a
visitá-lo! Terminei a ligação, tomei uma van na parada de ônibus mais próxima
e, quando cheguei na parada correspondente à quadra dele, desci e novamente
atravessei as três avenidas, até localizar o seu bloco de apartamentos.
Chegando lá, dirigi-me até o porteiro e lhe perguntei como chegar ao
apartamento dele, que depois de lhe telefonar para confirmar meu nome como
visitante me disse para pegar o último elevador. Contudo, acostumado com o
estilo dos apartamentos potiguares, peguei o penúltimo e me atrapalhei: quando
cheguei no andar respectivo, descobri que os apartamentos não tinham corredor
em comum e os elevadores eram “exclusivos” dos apartamentos que terminavam pelo
mesmo número em cada andar. E como o elevador que eu peguei se destinava aos
apartamentos que terminavam em outro número, não havia como eu chegar até ele
ainda que estivesse no mesmo andar. Assim, desci novamente até o térreo e,
dessa vez, peguei o elevador certo.
Assim que cheguei ao seu andar, o comandante já estava
com a porta aberta esperando por mim. Nessa hora, me senti subitamente
incomodado, pois mesmo que aquela fosse uma ocasião importante eu estava
vestido de forma informal, com uma camisa verde de tricô com mangas curtas,
bermuda escura e tênis, sem mencionar que estava um pouco suado pela caminhada
curta. Contudo, ele também estava vestido de forma simples, com camisa amarela
de mangas curtas e bermuda marrom e me recebeu com um abraço leve, que teve o
efeito imediato de me deixar mais relaxado. Em seguida, me convidou a sentar
numa de suas poltronas, e quando atendi seu pedido aproveitei para estudar seu
apartamento, bem decorado e com várias fotos de família, além de uma imagem
razoavelmente grande de Nossa Senhora de Fátima e, como destaque entre seus
livros, o “Diário” que Getúlio escreveu entre 1930 e 1942. Depois contemplei-o
com atenção e reconheci nele o mesmo homem calvo e de traços harmoniosos que
vira na TV, apenas um pouco mais alto que eu, ainda que algumas diferenças
também fossem perceptíveis: a imagem mais atualizada que eu tinha dele em minha
memória era de 1999, portanto de cinco anos antes, e ele estava mais magro e
envelhecido, com algumas manchas na pele. Mas o que mais importava ainda estava
ali, que eram sua simplicidade e espontaneidade, e elas me cativaram.
A primeira coisa que lhe perguntei foi como seu
ex-chefe era na intimidade, e ele me respondeu que “Dr. Getúlio”, como sempre o
chamava, na verdade era uma pessoa muito doce, mas mantinha uma postura
reservada porque tinha dúvidas se as pessoas se aproximavam dele por interesse.
E que era um pai carinhoso, especialmente com a filha caçula e principal
colaboradora, Alzira Vargas do Amaral Peixoto, que morava com ele, o marido e a
mãe, dona Darcy Vargas, no Catete. Na hora, aproveitei para perguntar o que ele
pensava de uma acusação recente de José Louzeiro no seu livro “O anjo da
fidelidade”, segundo a qual Gregório Fortunato só confessou a autoria
intelectual do Atentado na Rua Toneleros numa espécie de acordo para proteger
um grupo de pessoas que seriam as reais mandantes do crime, entre elas o filho
mais velho do presidente, Lutero Vargas, e seu irmão caçula, Benjamim.
- Essa história é um absurdo. Conheço esse autor e ele
gosta de inventar coisas! – respondeu ele com discreta irritação.
Em seguida, disse que estava no Catete no momento em
que Getúlio perguntou a Lutero se ele tinha alguma coisa a ver com aquilo e
tinha certeza de que o filho lhe disse a verdade, pois “para aquele baixinho
ninguém mentia”, bem como que o presidente não hesitaria em entregar o filho às
autoridades se ele confessasse que participara do crime. Também me revelou que
visitou Gregório na prisão e este lhe confessou que de fato mandou Climério e
Alcino seguirem Lacerda, mas que não seria burro de cometer aquele atentado com
um taxista “de meia porta” que fazia ponto no Catete, quando tinha à sua
disposição carros mais velozes e potentes. E me disse que acreditava na versão
que o assassino do major Vaz, Alcino, declarara na mesma revista em que fora
entrevistado, de que Lacerda teria atirado no major acidentalmente e para
disfarçar atirou no próprio pé. Condicionado por tudo que já lera e vira sobre
o assunto, comentei que achava essa versão exagerada porque um gesto assim
parecia “coisa de psicopata (e por mais que soubesse que o jornalista em questão
era capaz de coisas abjetas quando queria destruir alguém achei que uma atitude
assim era demais)”, e ele me citou dois argumentos que, no seu conceito,
corroboravam essa tese: primeiro, que Alcino estava a 10 metros de distância
dos dois e era muito difícil acertar qualquer um deles, ainda mais no pé. E que
caso Lacerda tivesse sido atingido no pé, este “teria ido parar longe”, dado o
tipo da arma de Alcino e a distância de onde o tiro deveria ter partido.
Confesso que essas questões alimentaram minhas dúvidas, e ao menos em relação
ao tiro contra Lacerda ainda as levo em conta, visto que algumas testemunhas da
época afirmaram tê-lo visto ficar de pé após o major ser atingido, e para um
ferido isso seria impossível (sem mencionar que aparentemente ele nunca teve
problemas de locomoção nos 23 anos que se passaram até sua morte).
Aproveitei o momento para também lhe perguntar sua
opinião sobre um filme que, oportunisticamente aproveitando-se da publicidade
em torno dos 50 anos do suicídio, acabara de estrear, inspirado no livro
“Olga”, de Fernando Morais, obra com que desde adolescente tenho uma relação
tumultuada, já que costuma ser utilizada como “carro-chefe” dos argumentos
antigetulistas. A esse respeito, ele não falou muito, dizendo apenas que não
abordaria o assunto em seu livro, pois só falaria daquilo que presenciou e
estava autorizado a falar (também participara de missões secretas, e não estava
autorizado a dizer nada sobre elas), mas dera uma palestra havia pouco tempo
sobre o presidente Vargas na Escola dos Oficiais porque o seu neto o assistira
e estava preocupado com o que as pessoas pensariam a respeito. Em seguida,
comentou que, pelo que sabia, Olga Benário era uma agente e líder comunista que
participara de atentados terroristas na Alemanha, causando a morte de um número
considerável de pessoas, e fugiu para a URSS para não ser presa, e que era bem
provável que os soviéticos a tenham designado para acompanhar Prestes aqui
porque queriam evitar que a presença dela lhes causasse problemas com a Alemanha.
E que teve oportunidade de conversar tanto com o viúvo dela, Luís Carlos
Prestes, quanto com Fernando Morais em eventos, e acreditava que a imprensa
valorizava a história muito mais que o próprio viúvo. O fato é que, na sua
opinião, ainda que pudesse ter ocorrido alguma arbitrariedade, não acreditava
numa participação direta do Executivo no caso e que estavam querendo
transformá-la em heroína do mesmo jeito que tinham transformado a mulher de
Lutero, Ingaborn Tem Haef, em “vilã”, só por ser alemã, a ponto disso ter
forçado a separação do casal (por via das dúvidas preferi não comentar uma
versão recém-publicada no livro “O dia em que Getúlio matou Allende”, de Flávio
Tavares, segundo a qual o casamento acabou porque ele a flagrou com uma
americana numa situação que dava a entender que as duas tinham um caso), e que
achava errado fazerem isso, só para “ganhar dinheiro”.
Em seguida, ele me fez simplesmente a revelação mais
bombástica da conversa: ele esteve presente na última viagem oficial de
Getúlio, realizada em 13 de agosto com destino a Minas Gerais, e que
acompanhou-o até a sede do governo de Minas, ocasião em que ele conversou com
Juscelino, então governador do estado, dizendo que não poderia fazer tudo o que
pretendia, mas já tinha deixado algumas coisas encaminhadas para o seu
sucessor, como a transferência da capital para o centro do país, chegando até a
encomendar diversos estudos, começando pelo correio aéreo do brigadeiro Eduardo
Gomes, para conhecer melhor a região, fechara alguns contratos e até assinou um
com a Alemanha para a fabricação de automóveis no Brasil. E que só depois dessa
ocasião Juscelino começou a pensar em ser presidente. Ou seja, segundo ele, o
presidente Kubitscheck “se apossara” da ideia do antecessor (ainda que não tenha
usado essa expressão). E para corroborar sua tese de que seria impossível
Brasília ter sido construída sem qualquer iniciativa prévia de Vargas,
argumentou em outra palestra por ele proferida que seria impossível ela ser
idealizada, projetada e construída da maneira como isso se deu sem haver algo
preexistente, por duas razões: a primeira, porque mesmo na atualidade um
edifício de grande porte nunca seria construído em menos de quatro anos a
partir da idealização dele, quanto mais uma capital federal; além disso,
Juscelino passou seus dois primeiros anos de mandato administrando revoltas
internas, incluindo uma na Aeronáutica, e só começou a construir Brasília em
1957, de forma que os prazos não batiam. Também questionou a forma como essa
construção se deu, visto que o presidente Kubitscheck usou as somas de um fundo
de pensões “praticamente intocado” criado por Getúlio para financiar as
construções (informação que foi confirmada dois anos depois pela minissérie
global sobre sua vida), e isso ocasionou a “quebra” da instituição, substituída
pelo (no seu conceito) ineficiente INSS.
Outro assunto que ele abordou na conversa foi sobre a
deposição de João Goulart, seu amigo de infância. Segundo ele, Jango só não
ofereceu resistência ao golpe de 1964 porque tomou conhecimento de que caso ele
tomasse essa atitude o governo do estado de Minas Gerais declararia o estado
independente e nessa hipótese os Estados Unidos, em conluio com os golpistas,
enviariam aviões para bombardear o país, e quis evitar um derramamento de
sangue. E que essa amizade lhe custou caro, pois ele e outros pilotos da
Aeronáutica foram aposentados pelo regime só porque apoiaram o presidente
deposto, ainda que não tenham demorado a conseguir empregos na Varig ganhando
mais. Porém, o governo não desistiu de boicotá-los, estabelecendo novas medidas
segundo a qual os pilotos aposentados só poderiam voar com autorização
expressa, acabando com a carreira deles.
Logo após, o comandante me mostrou diversas fotos que
tirou com Getúlio, algumas até autografadas, o documento que o nomeou ajudante
de ordens, que estava emoldurado em seu escritório, e parte de suas anotações.
Porém, já tinham se passado 45 minutos e ainda tinha de me encontrar com Carlos
para almoçar, motivo porque preferi me despedir do comandante, comprometendo-me
a lhe mandar dois artigos que escrevera sobre Getúlio, um na minha
adolescência, no “Memorial Santacruzense” e outro publicado no mês anterior no
“Jornal de Hoje”, e atravessei novamente as avenidas até tomar uma van de volta
à pousada. Chegando lá, tomei um banho e, enquanto esperava meu amigo me
buscar, anotei os acontecimentos no meu diário de viagens, para registrar tudo
o que ele me relatara, dada a importância da conversa.
Ainda tive oportunidade de me encontrar com o coronel
Fittipaldi novamente, numa outra visita que fiz à Brasília em março de 2010.
Nessa ocasião, ele já estava viúvo e com a saúde mais debilitada, mas ainda
conversamos um pouco, principalmente sobre sua dificuldade em conseguir que o
governo reconhecesse seu direito a uma aposentadoria proporcional, levando-se
em conta que foi um dos primeiros pilotos da aeronáutica e uma vítima
inconteste da Ditadura Militar. Aproveitei o encontro não só para conseguir um
exemplar de seu livro (publicado em 2007) como para tirar uma foto com ele,
coisa que não pude fazer na visita anterior porque, no nervosismo da situação,
não pensei em levar minha câmera comigo. Saí de lá refletindo sobre as ironias
da vida, pois embora ele tenha sido prejudicado na carreira simplesmente por ter
sido amigo fiel de dois ex-presidentes, talvez conseguisse o que pleiteava se
tivesse sido amigo de alguém ligado ao grupo político dominante, pois no mesmo
período havia muitas personalidades menos merecedoras de compensação do que ele
que estavam recebendo pesadas indenizações, apenas por terem se aproximado das
figuras “certas”.
Mas independentemente de qualquer coisa, sempre me
lembrarei daquele dia, não só pela gentileza e acessibilidade que aquele velho
piloto demonstrou para com este “guri”, mas também por ele ter me proporcionado
vislumbrar parte da vivência de um homem que com certeza foi polêmico e
contraditório, mas de quem não se pode negar que sempre lutou por seus
objetivos e fez tudo a seu alcance para melhorar o seu país. E que mesmo que se
conteste algumas das coisas por ele defendidas, a lealdade do comandante
Fittipaldi ao amigo que marcou sua vida, mais do que louvável, é um exemplo
para as gerações futuras numa época onde se relativiza tanto a importância das
outras pessoas em nossas existências.
Não tenho dúvidas, Renan, que este foi um dos melhores momentos de sua vida.
ResponderExcluirCom certeza todos que são admiradores de Getúlio sentirão grande alegria por você ter partilhado esse momento com eles. Para os amantes de história e para os que têm curiosidade sobre a pessoa de Getúlio, esse seu texto-reportagem será de grande valia. Parabéns!
Grande Renan!!!!! Mon.s Raimundo, Seu Sérvulo e Renan; nunca, na história de S. Cruz,houve pesquisador mais antenado, quando o assunto era G. Vargas, que superasse essa santíssima trindade! Renan, certa vez lá no Iesc, ficou extremamente chateado comigo por, nas minhas aulas de Literatura (contextualização histórica) dar umas alfinetadas no Grande Getúlio. Exibi o filme Memórias do Cárcere, acho que foi esse filme, e Renan bateu de frente comigo. A partir daí, comecei a admirar cada vez mais esse cabra! Alías, não falem mal de G. Vargas e de Tom Jobim perto de Renan, se não o bicho pega! Espetáculo seu texto, Renan!
ResponderExcluirRenan,o pequeno grande Renan! Que nem me conhece e eu,no portão da minha casa, ficava a observar aquele menino de passos ligeiros, sempre sozinho e com um jeitão de menino culto. Nunca me enganei! Renan surpreende com a riqueza de tudo o que escreve.
ResponderExcluirRenan, mesmo ponderando que não compartilhamos da mesma causa, permito-me chamá-lo de camarada. O sentimento e a intelegência que você dedica ao Getúlio Vargas, àquele momento histórico, são contagiantes. Espero que Deus lhe dê longa vida e saúde, pois você produzirá algo importante, ao menos para mim, sobre tema que também me é caro.
ResponderExcluirAss. Brunno Mariano Campos
Parabéns pela iniciativa e resgate de um pouco da nossa história,tão importante para o nosso país! Independente de ser ou não getulista, espero que continue compartilhando conosco suas curiosidades e percepções, desses e de outros assuntos relevantes para história e cultura do nosso povo! Seu texto está fantástico!
ResponderExcluirAbraço!
Mirthes Souza