Na
minha infância relógio mesmo só existia no bolso ou no braço de alguns adultos
que tinham “pulso” pra isso. Na escola marcávamos nas paredes o horário da merenda
e demais que nos interessavam com um risco em torno das réstias que se formavam
pela entrada do sol nos espaços entres as telhas. Nosso olhar se revezava entre
o quadro negro e os pontos específicos da parede, atentos aquele círculo de luz
em direção àquela marca. Noutro momento a codificação era do chocalho de ferro
nas mãos de dona Regina, lá da hoje Escola Estadual de Ensino Médio, Severina
Pontes. Neste caso o som tinha que atravessar toda a pequena cidade, encontrar
o menor número de obstáculos possíveis, até nos achar na outra escola, hoje, a
Escola Estadual Manoel Medeiros II. E foi lá que levantei a saia de uma aluna e
depois vi seus pais na casa da minha professora, Irene Barbosa, que bravamente
conteve os ânimos e não deixou que meus pais tomassem conhecimento: uma surra a
menos.
Foi
nesse período que ganhei e juntei muito dinheiro feito a partir de carteiras de
cigarro nos jogos de biloca, que acumulei bens como uma fazenda de bois de
osso, uma miniatura de casa no quintal e um carro num pneu que um dia o pobre
Zanga me levou . Desse tempo tenho ainda as prosas de seu Nô Birico: “Eita
tropa veia do...” que segundo ele era preto e mais adiante vivi a expectativa
em torno de uma data sempre adiada e anunciada por seu Vicente Paulino que se dizia
preparado para pular da torre da igreja católica. E foi na igreja, numa das
reuniões de doutrinamento para minha primeira comunhão com dona Vezinha, que
uma senhora foi motivo de risos por um pum que lhe escapou e que todos nós
testemunhamos. Dona Vezinha com competência a inocentou nos explicando sobre o
processo digestivo dos alimentos em nosso organismo: uma pausa para um assunto
também importante para nossa formação. “Tõe” de Mariquinha que fazia parte do
grupo ficou ainda mais compenetrado e em meio já à nossa reverência passou a
reproduzir de modo natural, espontâneo e insistente o mesmo som que ouvira da
senhora em foco. E a esta altura, depois da bela e convincente explicação, dona
Vezinha ficou impossibilitada de impor limites àquela criança.
Nesses
dias Batman já existia, direto da sala de justiça, numa televisão que ganhamos
e que num caixote ficava do lado de fora da Câmara de Vereadores. Mas as
primeiras televisões foram quatro, que como bem lembradas outro dia pela
cantora Sandra de Sá, eram televizinhos em preto e branco: a de seu Nilton, de
Pedrinho de dona Vezinha, de seu Severino Barbosa e a de meu padrinho, Geraldo
Anselmo. As janelas e as salas destas casas eram nossas e ocupávamos tudo que
era canto. Madrinha Maria Noêmia exigia apenas que as meninas se revezassem o
tempo todo fazendo cafuné em sua cabeça, as mesmas meninas, bem poucas, das
brincadeiras de “tô no poço”, onde eu era exigente e atrevido: -_Quem lhe
tira?_Meu bem! E assim era, ansioso pela última pergunta, para minha resposta
mais esperada: Com quê? _Com um beijo e um abraço! Mas fazíamos isso com a
mesma pureza de quando cantávamos que debaixo da sacada o cravo beijou a Rosa e
incapazes de construir qualquer piada de mau gosto, ainda que na brincadeira do
grilo, que ficava sempre atrás.
E
por último, quem me dera voltar às águas límpidas do nosso rio. É lá hoje e
onde mais precisamente agora gostaria de estar. Rio dos banhos intermináveis na
cachoeira de seu Jodoval. Rio da pedra de seu Zé Medeiros e do poço trapiar.
Rio dos prejuízos aos proprietários de carros nas enchentes, dos que ousavam
atravessá-lo e que para mim era apenas o nosso rio em festa, ou meu rio
particular em festa. Rio que infelizmente agora só morre enquanto insiste ainda
em contornar toda a cidade, como se faz num abraço e como sempre fez. E
enquanto isso, direto de nossa injustiça, nós, os sem noção, cruzamos os nossos
braços com nossos relógios de telefone ou telefones de relógio, calendário,
calculadora, alarme, cronômetro, rádio, câmera, televisão, música, sofisticação
e muito mais, tudo junto, para cuspir dejetos em seu leito, ainda que e já em
seus últimos suspiros.
É
certo que hoje acordei com um quebra-molas quase pronto e quase em frente à
minha casa, onde passa um riacho que antes também nos era natural. Sei que
assim estou ganhando uma bela represa artificial que pode até inundar a minha
casa e, quem sabe, a minha vida, mas não quero. Prefiro voltar no tempo e o que
mais quero agora é ao menos ou somente o rio de minha infância, onde ninguém me
parecia sem noção.
Massa, Maciel!
ResponderExcluirMuito bom, viu, Maciel! Gosto muito de seus textos. Sempre bem articulados e inteligentes.
ResponderExcluirAdorei o texto Maciel, passou um filme na minha cabeça dos meus 7 aos 14 anos, tempo em que desconhecia as palavras: preocupação, responsabilidade e era feliz e não sabia. Não cheguei a fazer cafuné na dona da TV, mas me lembro dos banhos de rio escondido de pai e das inocentes brincadeiras do grilo, to no poço e das queimadas na rua depois do jantar enquanto a vizinhança se reunia na calçada pra conversar, pois não tinham computador nem televisão. Uma vez quase fui atingida por uma pedrada da mão certeira de Zanga.
ResponderExcluirEita Maciel, que tempo bom aquele, só não levantava a saia das meninas rss, mas brincar com notas de cigarro, boi de osso e carrinho de lata eu fiz muito.
ResponderExcluirQue beleza de texto. Emocionante e emocionado.
ResponderExcluirQue texto!!!Sensacional.
ResponderExcluirValeu ,Gilberto,Marcelo,Maria, Hélio e Nelson!
ResponderExcluirEu comentei com Gilberto que aqui na minha cidade sinto falta desse reconhecimento e por isso tenho que vir buscar aqui. Não é que isso me deixe lisonjeado , mas é porque depois de escrever o texto , refazê-lo , se necessário desfazê-lo ou se achar por bem recomeçá-lo ,a exemplo de tantos colegas aqui, faço tudo também com muita dedicação, empenho e dependo ainda do olhar de outras pessoas para sinalizar se valeu a pena, se devo jogar tudo fora ou até desistir. Agradeço pelos comentários voluntários de vocês, sei da sinceridade e isto me serve de incentivo para continuar tentando.
Obrigado mesmo!
Maciel é um cracasso da nossa crônica. Gosto muito de seu estilo! Que venham outras magistrais tiradas. Parabéns e um grande abraço!
ResponderExcluirValeu, Nailson !
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