sábado, 25 de novembro de 2023

NO ENTRANÇADO DO COTIDIANO



 







NO ENTRANÇADO DO COTIDIANO


Dá uma olhada no repertório de imagens e encontra o quadro “café no jardim” que retrata duas mulheres, uma menina também sentada e um garoto chegando com o bule na mão. Ao lado, uma casa velha com várias janelas, e ao fundo um lago com montanhas. Precisa apreciar, logo cedo, alguma manifestação artística para iniciar seu dia, e essa imagem foi a escolhida de ontem.  

Vai à casinha, lembrando-se da época que estudava o primário. Seu passatempo agora é jogar boliche ou sinuca, tudo sozinho, e quando aparece alguém insistindo em participar, diz que precisa ir embora. Seu jeito estranho afasta as pessoas, mas isso não o incomoda, pois prefere ficar junto das suas imagens do que sorrir a contragosto.

No caminho de volta para casa, depara-se com um menino de barriga inchada e moscas andando nos cantos dos olhos. Aquele está sem forças até para pedir ajuda. Faz que não vê passando indiferente como a maioria das pessoas que saem dizendo para si mesma que não têm nada a ver com aquilo. Os passantes se satisfazem em afirmar que não foram culpados em colocar aquela criança no mundo, então, nada melhor do que permanecer ilha. Nem sabem eles que os pais daquela foram jogados num navio negreiro e quebrados os dentes da frente para engolir a papa quando estavam fazendo greve de fome. Ou engoliam ou morriam sufocados, foi assim que ela nasceu já condenada.

Agora está de volta ao seu lar onde suas crianças não sofrem do mal da fome, há pouco presenciado. Senta-se na mesa com a família torcendo que não aconteça com elas, e isso já é tudo. Encontra-se num beco sem saída querendo endurecer o coração para economizar uns cobres, porém seu altruísmo sofre toneladas e isso vai para um caderno de capa azul que o segue já há vários anos. É nele que anota todas as experiências traumáticas, e essa foi uma delas. 

Ah, lembrou-se que a esposa está chegando de viagem. Vai ver como estão as batatas sendo cozinhadas. O apetite está ficando mais intenso obrigando-o a se deter numa operação tão sem graça quanto olhar batatas cozinhando.  

Chegou há pouco da cozinha onde os alimentos continuam recebendo o trato necessário para se fazerem deliciosos, e ao voltar avista a flauta largada em um canto sendo utilizada para relembrar que seu tempo em acreditar que conseguiria tocar sem errar já passou. Sua mente precisa de algo que deixe marcas na matéria para provar que foi ele que fez, e a música se evapora contrastando-se com sua personalidade de não tolerar a repetição. Precisa continuar regendo a orquestra de palavras fazendo canalizarem-se em prol de ideias bem apresentadas, e o bom dessa atividade é que pode errar à vontade. 

Daqui a pouco, vai pegar o elevador e desaguar no veículo que massacrará o asfalto com os pneus até o destino já planejado. Quando chegar lá, vai dizer boa noite, como estão vocês, conversará entretendo-se com assuntos não muito interessantes com o objetivo de fazer hora. Depois, regressará ao lado daquela que disse sim há mais de vinte anos, e quando chegar em casa, voltará para a página igual a um cartão de crédito entra na fenda da maquineta.  

Pronto, está de volta relembrando que durante a viagem soube da gincana e da apresentação cultural de um rapaz que apresentou o show da sunga preta, depois que a luz havia apagado e um globo colorido, daqueles de boate, refletiu em cores variadas no corpo oleado do atleta. As jovens foram ao delírio, sem que a organizadora do evento precisasse ser transferida pelo choque cultural produzido nas beatas da comissão julgadora.   

Em casa, foi assistir “corra que a polícia vem aí” até pegar no sono e acordar com o sol alto. Fez o café de manga, lavou a louça escutando um áudio e contando as palavras para poder enviar o que escreveu. 

O celular está escorado na parede olhando para ele como quem diz: não vai me acessar hoje não? já acessei, responde a ele mesmo sem falar. O bom de se comunicar consigo mesmo é que nem precisa sorrir, a não ser que esteja treinando algumas caricaturas que irão fazer dele um ser mais sociável. 

Escutou barulhos de fogos de artifício. Será que é avisando que chegou droga nova no ponto de vendas? Antigamente os povos se reuniam para destruir determinadas castas, hoje as próprias mantêm as pessoas derrubando outras dentro dela própria. É o fim! 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 25.11.2023 – 10h56min.



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