quarta-feira, 4 de outubro de 2023

PONTO DE RETICÊNCIAS - Maria Goretti Borges

 



Ponto de reticências


As reticências indicam interrupções, hesitações ou uma lacuna a ser preenchida (Googlei). Nelas estão contidas o real e o vazio imaginário, necessários à supressão dos embaraços, indecisões, perplexidades e afins. Uma espécie de embalagem a vácuo.

As reticências – assim como as sinfonias – trazem em si o belo do sentir, o regozijo da palavra não dita, a satisfação da plenitude, a sobrevivência da palavra morta na garganta! No desafio das nuances da interpretação, seriam elas, uma carícia para as almas não afogadas, os amores desfeitos, o abraço sem o calor desejado, o recuo, o temor, a incapacidade humana de expressar-se em sua plenitude?

Fora dos parênteses, as palavras nos revelariam, por exemplo: estarem saturadas de atalhos, nós não desatados, laços desfeitos, escrita tímida, insegura, conceitos em construção, pensamentos mesquinhos, mordaças que aprisionam o verbo?

“Qual a palavra que nunca foi dita, diga”. Na composição Paula e Bebeto (Milton/Caetano) as palavras são proclamadas e suas múltiplas funções professadas. No apagar das luzes, seriam as palavras não ditas uma luz no fim do túnel?  “Hoje contei pras paredes, coisas do meu coração”, contar para as paredes seria uma forma de disfarçar o uso das reticências?

Observando-se a literatura brasileira e os ditos populares, percebe-se o quanto as paredes fazem parte das reticências humanas. Entre quatro paredes as palavras faladas não são totalmente ao vento, ecoam com muita intensidade em quem as proclama.

De acordo com o adágio:  ”Quem está na chuva é pra se molhar”. Contudo, já para reticências, as palavras que nos habitam não necessariamente precisam ser ditas, elas, as reticências, atuam como um guarda-chuva, protegendo o sujeito do predicado.

 Da tua história, tal qual Djavan, também não sei. “E a tua história, eu não sei mais me diga só o que for bom”. Para quem ficará a escuta das reticências, dos parênteses, continuarão a divagar, a habitar o mundo do imaginário? Seria o momento e a sutileza do psicanalista, seria ele, o desbravador dos enigmas assombrosos, da fluidez do pensamento, leveza do dito, da gargalhada debochada, o riso frouxo, do cumprimento descomprometido com a profundidade do sentir?

Há quem diga que as reticências nos asseguram as interrupções necessárias para seguirmos adiante, os obstáculos transpostos, os momentos indesejados.   

Seriam as reticências o côncavo do amor? O amor é a resposta, a explicação, a plenitude, a revelação. Já nas reticencias: estão imbricadas a ocultação, a desfaçatez, a confusão, o represamento, a sutileza, a cumplicidade, etc.

Salve, salve as reticências, elas nos salvarão. Só nelas cabem o significado e a grandeza da Arte. Como descrever a interpretação magistral de Maria Bethânia da música Todo o sentimento (Chico Buarque) na posse do ministro Barroso? Só nos resta lançar mão do nosso “eu Chicó”, “não sei, só sei que foi assim!”. 







15 comentários:

  1. É impressionante o poder que esses três pontinhos têm.
    Texto bastante reflexivo. Nos leva à várias vertentes.
    Parabéns, professora Goretti!
    Como sempre, nos presenteia
    com textos belíssimos.


    ResponderExcluir
  2. Mais um belo e reflexivo texto escrito pela Professora Goretti. Impossível não lembrar das reticências presentes no nosso cotidiano.
    Parabéns.
    Francisca Joseni dos Santos


    Joseni.

    ResponderExcluir
  3. Não é possível enunciar se tudo é um grande começou ou um final magistral, ficam as reticências, sempre. Um entre termos, início-término. Parabéns pelo texto, reflexão, sensibilidade, minha amiga!
    Abraços.
    André

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oh André, meu historiador favorito! Beijo 💋

      Excluir
  4. Olá, Goretti. Mais q abrigar sob uma aparente opacidade, as reticências são reveladoras, sofisticadas e sutis, de subjetividades, de emoções e conceitos estrategicamente contidos, como num jogo no qual quem tem a voz sugere ao outro ter pleno domínio da situação, sabendo muito bem capturá-lo nesse movimento de revelar/esconder intenções e sentimentos.Texto inteligentemente bem construído. Parabéns!

    ResponderExcluir
  5. Resposta inteligentemente complementar, obrigada Francisco! Um abraço 🫂

    ResponderExcluir
  6. Reticências escondem e revelam. Já imaginou se alguém entrasse pra comentar e pusesse apenas o ponto de reticências? A autora ficaria com um ponto de interrogação. Já eu coloco uma exclamação: ficou excelente o texto! - Gilberto Cardoso dos Santos

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Muito obrigada, meu querido amigo Gilberto! 🫂

      Excluir
  7. Há o que seria de nós sem as reticências. Muitas vezes precisamos frear a nossa mente, ou deixar fluir, devanear. Texto excelente, rico.

    ResponderExcluir
  8. Tenho predileção pelas reticências. Elas são livres dos fins. São continuações, "atitudes responsivas". Estão abertas às continuações! Parabéns pelo texto, pelo "tempo da delicadeza" da escrita! Ave, palavra!

    ResponderExcluir
  9. Respostas
    1. Muito obrigada minha querida amiga, você tem predileção por tudo que é belo! Um abraço carinhoso e a minha profunda admiração. 🌹

      Excluir

Comentários com termos vulgares e palavrões, ofensas, serão excluídos. Não se preocupem com erros de português. Patativa do Assaré disse: "É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”