segunda-feira, 5 de junho de 2023

DESLIGADO DA REALIDADE

 




DESLIGADO DA REALIDADE


Escuto um barulho escorregadio. Devo ter deixado a torneira aberta ou ela voltou a vazar. Mas como pode isso acontecer se está faltando água desde ontem à tarde? Recebi um telefonema da administração do prédio dizendo que a caixa estaria em manutenção. Foram contratados dois trabalhadores para fazer o serviço e até este momento nada de resolver essa questão que nos deixa refém sem poder nem lavar o rosto. 

Estou usando cuspe para molhar os cantos dos olhos evitando ficar tão horrível diante do espelho, que por sinal está precisando ser trocado. Todo manchado de marrom, o vidro dá uma má impressão danada. Se uma visita chegar, vou passar vergonha. Demoro a recebê-las. Geralmente quem vem são as pessoas da família, porém são piores do que os de fora para saírem falando mal. Procuram até olhar se as panelas estão com aparência de queimado para comentar que somos imundos. 

Claro que eles já sabem que costumo tomar só um banho por semana, mas não gosto quando falta água. Acho bacana saber que quando quiser molhar o corpo posso contar com muita água à disposição. Esse negócio de ficar esperando é ruim porque possa ser que eu pegue o gosto por banho e perderei mais tempo fazendo a manutenção do corpo do que mesmo viver bem. Eu penso assim: se vou ser enterrado, para que ir limpo?

Aliás fiquei muito triste quando chamei o coveiro para a confraternização de final de ano e ele disse que o piso do meu apartamento é horrível. O objetivo de convidá-lo foi para que não ouvisse nenhuma crítica, e vem logo o coveiro se achar superior a mim, fiquei zuado. Nunca mais vou convidá-lo. Ainda mais a mulher dele que ficou bêbada querendo tirar a roupa e me dar em frente às crianças. É muito sem futuro. Foi preciso a cantora da banda interferir tirando-a para o jardim. Até o zelador veio reclamar que ela havia arrancado umas plantas jovens que ele estava aguando com tanto carinho. Precisei lhe dar umas gorjetas para ele não me colocar no livro de ocorrência. 

Qualquer dia desses eu furto aquele livro. Nele tem mais denúncias contra mim do que acusações contra desvio de dinheiro público. Ontem mesmo, soube que uma mulher registrou que eu estava sufocando sua unidade com fumaça de mato queimado. Ela só não disse que eu era maconheiro porque tem medo de pagar indenização. Eu vivo atrás de denúncias caluniosas. 

Mês passado ganhei uma indenização de um milhão por dizerem que eu estava alugando o meu apartamento para promover encontros de casais. Fui viajar e deixei na mão do corretor para alugar por temporadas, quando retornei até minhas meias haviam sido furtadas. Uns talheres de prata que eu guardava da minha avó, com tanto carinho, surrupiaram tudo. Eu tinha deixado anotado, mas o corretor perdeu o inventário quando se enrolou com umas inquilinas que vieram da Europa. Ouvi falar que foi bacanal os três meses que passei fora. Até a polícia veio a chamado, porém se envolveu tanto com elas que aqui em casa parecia mais um quartel. 

O dinheiro arrecadado com o aluguel deu para repor tudo, e ficou acertado que no próximo verão elas trarão outras milionárias para o meu apartamento de duzentos metros quadrados. Vou esperá-las para orientar essas misses europeias e as atrizes de Hollywood. Não posso nem dispensar essa agência que tem contato direto com esse povo. Já quiseram comprar meu apartamento me dando, como brinde, um outro em Miami Beach, no entanto não tenho interesse em perder esse que é especial. Às vezes falta água, mas é o mínimo. Falar nisso, vou olhar que barulho foi aquele.

Você ainda não foi embora?, pergunto para a mulher que veio entregar uma pizza e ficou para dormir. É que encontrei tanto espaço e vi que não tinha ninguém ocupando esta suíte, por isso resolvi acampar. Aqui em casa é assim. Faz tempo que perdi o controle da porta e quem chega vai ficando, principalmente as estudantes do interior que não têm onde ficar, vão se integrando aos quartos a ponto de uma ter concluído o mestrado e eu nem ter me dado conta dela dormindo na mesma cama que eu. Aqui e acolá eu usava alguém como boneca inflável, mas jamais pensava que era uma mulher de verdade. 

Veja aí na sua bagagem se tem alguma coisa que sirva para o meu café da manhã. É que eu trabalho com o mercado financeiro e fico tão ligado no sobe e desce das bolsas de valores que esqueço de fazer a feira. Tem sim, pode deixar que eu preparo.  


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 04.06.2023 – 11h54min.



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