O PEÃO E SEUS PIÕES
Mais uma vez fui ao cinema para assistir qualquer coisa, sim porque é na segunda-feira que reservo para olhar vitrines, assistir filmes e comer chocolate. Um ritual que me custa um pouco mais de trinta e que atende às minhas necessidades consumidoras de varejo. Fico pensando nas minhas limitações econômicas de trabalhador braçal, e faço esse gasto programado que já tenho um lastro nas horas extras que faço para esse fim.Visto a roupa de festa, pego o buzão e me largo pra lá. Digo à mulher e aos meninos que vou ao hospital visitar o pessoal da irmandade para que eles não queiram vir comigo senão o custo triplica. Quando um insiste em vir, perco essa oportunidade de viver um pouco do sabor solteiro, mas eles acham chato visitar doentes e por isso escapo sem maiores problemas.
Todo homem tem seus segredos, e esse é o meu. Gostaria de ter tido oportunidade de ser artista de cinema, só que desde cedo pai me ensinou a usar uma colher de pedreiro e aqui estou. Acho bonito as pessoas levarem seus filhos para brincar nos jogos eletrônicos, mas se eu fizer isso o dinheirinho da feira vai todinho embora.
Artista das pedras, digo quando me perguntam se sou pedreiro. Quando vejo alguém carregando um cesto no papel de figurante, é com eles que me identifico. Um vendedor de frutas ou alguém com um pote na cabeça, são nesses que presto atenção. Poderia ser eu, mas tenho vergonha de falar para as câmeras.
Comprei um celular que grava vídeos, e estou fazendo uns filmezinhos com a vizinhança. Já tenho até um canal que divulga brigas, galo cantando, etc. Essa semana finalizei uma grandiosa produção cinematográfica tendo como título “A vítima." A minha mulher acorda com uma dor na barriga. Geme, vai ao banheiro e nada sai. Toma água e descobre que é fome. Meus temas são sempre baseados na minha miserabilidade. Ela fala que é melhor comer a galinha que recebeu de presente antes que alguém a furte. Mas mãe, ela já está botando ovos. Não tem problema, é melhor fazer uma canja, e há uma discussão onde o menor chora por já estar se apegando à ciscadeira. Foi o nome que botaram nela.
A protagonista, minha mulher, se enraiva. Diz que vai matar sim. A vizinha chega na hora e diz tenha calma comadre, só basta dar uns puxões de cabelo. Não é com aquela vagabunda não, é da galinha que estou falando. As duas vão ao quintal. Uma segura a bicha e a outra degola. Minha esposa não sabe nem matar galinha e a comadre passa a faca em troca do sangue que leva para fazer pirão. A gurizada arrodeia com cara de pena real. O final é com todo mundo de osso na boca achando graça. Ficou bom, só que eu que estava gravando não tive direito a nenhum pedaço. Acho que o diretor não deve ter nenhum sentimento em relação às atrizes, por isso não pedi um pedaço da asa que gosto.
Antes tinha uma cerveja sem álcool que eu saboreava na praça, mas agora com a crise não faço mais essa desfeita. É necessário dar essa saída semanal senão enlouqueço. Preciso dessas imagens grandiosas, do luxo do shopping para suprir meu vício de fugir da rotina e lá é o local mais barato que encontro para realizar meus sonhos reprimidos.
Nunca levei a minha família. Sei que se eu for com eles logo vão ficar viciados. Os meninos sempre perguntavam o que era esse tal de shopping, mas eu desconversava. Não queria eles acostumados no que não podiam pagar. Eu dizia que só quando eles estudassem muito é que poderiam ir, só que está difícil segurar porque seus amiguinhos falam muito quando chegam do passeio dominical.
Muitos do bairro vão pedir esmola nos arredores e alguns mais afoitos furam a segurança e conseguem um dinheirinho a mais até serem expulsos. Não quero eles andando com essa turma, mas fazer o quê?! Quando saio, a mulher libera porque acha bonito eles trazerem dinheiro para ela gastar com batom e perfume. Eu vivo tão cansado do dia a dia que nem consigo mais dizer o que é certo ou errado. Quando chego em casa encontro a comida em cima da mesa e ela assistindo televisão. Os meninos na rua e nem sei se voltarão naquela noite. Eles já devem ter ido ao shopping por conta própria, mas não me falaram.
Encontrei uma sereia na tela e fiquei olhando, de vez em quando, calculando a que horas ia terminar o filme, preocupado com o último ônibus que passa aqui em frente. Um dia desses perdi e tive que vir a pé. Cheguei de madrugada para logo cedo estar trabalhando.
Depois de alguns minutos assistindo, relaxei e fiquei dizendo: vamos ver o que esses roteiristas prepararam para mim. A tensão maior era para acontecer um beijo que ficou para o final. As imagens do fundo do mar pareciam que haviam sido copiadas e coladas de avatar. No geral deu para se entreter, objetivo maior de sentar naquelas poltronas macias. Ao meu lado, uma jovem com as pernas de fora que quase não assisto de tão chamativas que eram.
A mulher não liga muito que eu saia à noite. Desconfio que ela faz ponto no cabaré da Creuza aqui perto. Essa semana apareceu com os cabelos loiros e umas calças apertadas. Nem perguntei onde arranjou dinheiro para essas extravagâncias. Ela é braba, e eu prefiro deixar de lado. Já nem fazemos mais menino como antigamente. Foram vendidos três em troca da casa em que moramos. Umas madames de fora já haviam acertado o valor quando me dei conta levaram. Só crio quatro e está difícil ficar livre deles porque já estão grandinhos e ninguém quer adotar moleque já falando.
Ela está negociando o rim da menina mais velha com dezessete anos. Diz ela que vai dar para comprar uma motinha. Ela é doida para possuir uma, e deve ser por isso que só vive na garupa agarrada com os machos deixando a saia levantar ao vento. Não sou nem doido de dizer nada. Os caras são os mandões aqui no pedaço e ela é conhecida como a mais do bairro, e eu, o menos.
Mais de duas horas do meu tempo olhando o resultado na tela grandiosa. É bom para ver o que está sendo criado pelo mundo afora, já que nesse ramo tudo pode acontecer, até um siri falante eles conseguem fazer.
Acho necessário carregar minhas energias com as diversões dos ricos, assim fico ensaiando para quando eu tiver muito dinheiro saber me comportar. Às vezes também consigo ler algo na hora do almoço. Ontem li um conto onde a moça estava querendo abortar e o médico disse que era melhor ela matar aquele que estava em seus braços, pelo menos ela não corria o risco de morrer junto, pois tanto fazia matar um já crescido como matar um na barriga. Ela decidiu criar os dois.
Graças a Deus minha mulher nunca quis matar nenhum. Só um que nasceu morto, dizem até que foi uma raiva que ela teve de não receber um dinheiro do xexeiro. Enquanto ela se vira de um lado, eu fico com as minas que precisam rebocar parede, assentar vaso sanitário, serviço que elas não podem pagar em espécie e me pagam com o arrumado. Final de semana eu faço esses extras nas casas delas, enquanto a minha mulher faz não sei onde, senão não dava para comer carne todo dia.
Amanhã tem mais coisas para fazer. Enquanto vou para o trabalho no coletivo apertado, sonho em estar num avião viajando para bem longe, igual vejo nos filmes. Acordo bem cedinho com os planos de viajar. Fico pensando que daqui a pouco estarei pelos sete mares a bordo de um iate. Nasci com o espírito de bilionário, depois jogo tudo fora e desço na parada perto da construção.
Minha vontade de escrever vem da vontade de matar o tempo. Em vez de ficar só trabalhando, fico riscando papel sem a criatividade dos homens que fazem filmes. Só me vem a minha própria experiência de vida, mas um dia eu chego aos pés de William, aquele que fez Romeu e Julieta. A minha vida parece muito com a de Romeu, e minha mulher é Julieta todinha.
Saio do cinema apressado para ir ao banheiro. Lá eu posso enxugar as mãos com um secador a vento. Passo muito tempo com as mãos naquele negócio. Acho bonita a limpeza dos banheiros. Lá em casa nem a sala é tão bem cuidada. Quando saio do cinema imagino que tem um mordomo me esperando para me levar para o meu palácio, só que me deparo com um motorista abusado e um cobrador com cara de sono, além de pessoas com os sovacos fedorentos se balançando perto de mim.
Foi bom o passeio. Acho que a próxima semana irei novamente, se não for demitido.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/ RN, 06.06.2023 – 06h47min.
"O Peão e seus Piões" retrata a sórdida realidade de um um trabalhador braçal que encontra refúgio no cinema e na imaginação. Comovente história que nos mostra o poder da arte. - Gilberto Cardoso
ResponderExcluir"Certa vez, um grande amigo do poeta Olavo Bilac queria muito vender uma propriedade, de fato, um sítio que lhe dava muito trabalho e despesa. Reclamava que era um homem sem sorte, pois as suas propriedades davam-lhe muitas dores de cabeça e não valia a pena conservá-las. Pediu então ao amigo poeta para redigir o anúncio de venda do seu sítio, pois acreditava que, se ele descrevesse a sua propriedade com palavras bonitas, seria muito fácil vendê-la.
ExcluirE assim Olavo Bilac, que conhecia muito bem o sítio do amigo, redigiu o seguinte texto:
"Vende-se encantadora propriedade onde cantam os pássaros, ao amanhecer, no extenso arvoredo. É cortada por cristalinas e refrescantes águas de um ribeiro. A casa, banhada pelo sol nascente, oferece a sombra tranquila das tardes, na varanda."
Meses depois, o poeta encontrou o seu amigo e perguntou-lhe se tinha vendido a propriedade.
"Nem pensei mais nisso", respondeu ele. "Quando li o anúncio que você escreveu, percebi a maravilha que eu possuía."
"Algumas vezes, só conseguimos enxergar o que possuímos quando pegamos emprestados os olhos alheios."
É o que Gilberto Cardoso dos Santos faz com meus textos. Obrigado, amigo.