terça-feira, 4 de abril de 2023

ASSÉDIO ALIMENTAR

 


ASSÉDIO ALIMENTAR 


O caminhão segue transportando roupas sendo guiado pelo próprio dono da fábrica. Ele começou alugando sua “disposição" até que seus olhos ficaram vermelhos de tanto olhar para a frente.

Querendo juntar um "dinheirinho," deixou de "visitar" as meninas de beira de estrada para contratá-las utilizando o mesmo "macete." Alugou-as para mexer em linhas e tecidos. Elas tiveram que deixar de lado os buracos das fechaduras para se concentrarem nos fundos das agulhas. 

Ele foi enriquecendo e continuou dirigindo caminhão por puro prazer. Esse motorista sou eu. Nem queria dizer isso porque já basta de tantos sequestros, mas acredito que ninguém saberá que sou bilionário, entretanto gosto de me entreter até trabalhando de pedreiro.

Recentemente, construí uma estante de ferro para guardar, bem arrumados, a chave de fenda, alicate, martelo e seus "familiares." Eu nunca gostei foi de prego, prefiro afixar tudo com parafusos. O prego é fake. Quando menos se espera, desprega.

Eu só não consigo é convencer o sinal da internet a voltar. Desde anteontem que ele fica rindo da minha cara quando tento encontrá-lo. Já desliguei o roteador, a energia, inclusive a dança da transcendência eu até já dancei, e nada. O sinal da internet é como assombração: quando menos se espera, foge, depois chega, e assim vai.

Foi na internet que aprendi a enganar, e agora isso se tornou tão forte em mim que quando quero ter uma recaída de honestidade, jogo minha camisa em uma árvore e me escondo. Quando não vejo mais ninguém passando, vou lá e furto a minha própria camisa. 

Quando não consigo praticar o mal contra alguém, eu me sequestro. Tranco-me na suíte e fico fingindo que estou num cativeiro. Às vezes, mando minha esposa me amarrar para quando for trancafiado de verdade, poder administrar bem a minha claustrofobia.

Acho que além das "matérias" básicas, deveria ser inserida na grade curricular das escolas a disciplina: "vítimas da violência." Treinar os alunos para saber se comportar com uma pistola na cabeça, esse seria um dos objetivos. O outro seria desenvolver o equilíbrio emocional quando ficassem sem fôlego dentro d’água na prova final do curso. Só passaria de ano quem não desmaiasse.

Digo isso porque estou estudando para ser coach. Eu sempre quis assumir essa função de orientador de tudo, e o melhor dessa profissão é poder dizer o que os outros devem fazer. Vou ficar na rua para quando alguém vier andando em direção ao norte eu orientá-la em sentido contrário. Vou argumentar que mudando de itinerário ela chegará a um lugar errado, e como sempre procurou estabilidade no que é correto, e mesmo assim permanece travada, então está na hora de ir para a padaria quando precisar de um médico; quando for fazer compras, pegar o caminho da praia. Essa inversão de valores é que faz a mente ter plasticidade, de forma que o próprio pensamento se altera naturalmente extinguindo as soluções, e, consequentemente, os problemas.

Ontem, ao invés de resolver os meus, tomei o caminho do cinema. Assisti um filme de ação. No lugar das conversas, muitas explosões; no lugar dos beijos, facadas. A maneira da atriz principal expressar seus sentimentos amorosos junto ao protagonista, foi enforcando-o.

Voltei para casa com todos os problemas resolvidos, se não, pelo menos mascarados. Só que a cada amanhecer a rotina chega em formato "padrão problema": é o menino para deixar no colégio, carro na oficina, comprimidos, boletos, "unha encravada" e até infiltração no dente há pouco restaurado, aparece. 

Há dias que os problemas se avolumam mais de que em outros. Eletrodomésticos, por exemplo: a geladeira combina com a máquina de lavar para se quebrarem no mesmo dia; o carro deixa de funcionar quando o fogão pifa; a correia da sandália se quebra no mesmo instante que o salto do sapato se arranca. A melhor forma de lidar com problemas de cunho material é poder e querer comprar. Ficar torcendo para que eles se quebrem e só assim se divertir entrando nos sites de vendas e respirar aliviado ao abrir a porta e se deparar com o comprador de sucatas. 

O que se pode perceber é que as pessoas não viram sucatas. Podem ir para o hospital, abrigo, asilo, nunca serão trastes. Alguém pode até chamar o outro dessa forma, mas não é o aceitável no mundo dos recicláveis. De "peste" eu já fui chamado, mas até dei razão à autora do desprezo por entender que nós humanos, do ponto de vista das árvores, somos isso mesmo, só que de forma particularizada ela soltou esse desaforo ao perceber o seu casamento ser cancelado na hora do não.

Isso foi há muito tempo, quando eu ainda estava começando a explorar mão de obra feminina. Entre a costureira e a dondoca, preferi a que me daria lucro. A outra só vinha com ideias de passeios, restaurantes e hotéis caros. A atual mãe dos meus filhos, essa não, até a quentinha dividia comigo. Lembro-me quando adoeci e o médico passou um xarope. Ela fez de raspa de pau para economizar. Deu certo. No outro dia o intestino se desprendeu que ficou parecido com o dilúvio de Noé. De outra feita, eu estava precisando visitar um fornecedor em outro Estado. Fomos de fusca e no meio do caminho paramos para almoçar, e quando os outros clientes saíram das mesas, ela pegou os restos de sucos e trouxe para tomarmos juntos. Ah, que mulher! Às vezes só uma refeição dava para nós dois, pois os "estragados" deixavam até ossos no prato sem roer, e lá ia ela. Eu fingia que não via cobrindo o riso com o guardanapo.

Hoje, quem me ver bilionário pensa que eu esbanjo. Só não continuo "pegando os restos" porque vivo cheio de paparazzis correndo atrás de cenas escandalosas. Aqui em casa, ainda uso vasilhas vazias de margarina para colocar as cascas das frutas. Dizem que os nutrientes estão nelas, e então, reaproveito-as. 

Meu costume de fazer a feira na rua ainda mantenho. Pechincho até os feirantes, com raiva, jogarem laranjas e bananas em mim. Para não as desperdiçar, coloco todas no saco. Ainda bem que, para disfarçar, uso máscara de silicone, chapéu e bigode quando vou comprar cará na feira do peixe.

Alguém pode até ficar em dúvida como sou tão mesquinho e vou assistir filmes. O cinema é meu, não só aqui, mas em todo o mundo. Essa rede de cinemas eu comprei quando os filmes de Charles Chaplin e Tarzan eram esperados com ansiedade. Até eu quis, inspirado na macaca chita, treinar alguns desses animais para executarem as tarefas no chão da fábrica, mas eles bagunçaram as estampas. Depois eu percebi que ficava muito caro manter veterinários e treinadores a postos, além de arcar com danos frequentes nos equipamentos.  

Ultimamente tenho investido em moradoras de rua para gerarem exército de reserva. As que escaparem das drogas e violência, serão contratadas a troco de um prato de comida. Está dando certo, bem melhor do que os macacos. 

Eu quis até investir em "fábricas-prisões." Os presos teriam que produzir para pagar alimentação e o aluguel do quarto gradeado. Meu projeto era que quem não trabalhasse não comia, ou quem quisesse ficar sem produzir, a família teria que arcar com as despesas do detento. Infelizmente esse projeto foi engavetado porque os defensores do Estado disseram que os delinquentes têm o papel importante para deixar o resto da população sem reivindicar saneamento básico, saúde e educação de boa qualidade. O medo deixa todo mundo bem quietinho, essa é a “manha.” 

Ultimamente, estou diversificando meus negócios para vender papelão comestível, tipo pizzas e sanduíches.  Água colorida com ácido muriático diluído em sebo de carneiro que recebem o nome de refrigerante, milk-shake etc., eu já fabrico há bastante tempo. 

A cada inauguração das lanchonetes com comida modificada, abrimos uma farmácia. Vendemos comidas "adoecedoras" de um lado, e do outro, remédios que irão curar os males provenientes da má alimentação. Por isso é que se diz: ricos doces, pobres adoecidos.

Quando havia total liberdade em fumar, eu estive no mercado de cigarros. Agora estou correndo para ganhar o máximo de dinheiro antes que refrigerantes e hambúrgueres sejam também proibidos. Estou investindo numa nova droga cancerígena. Ela já está sendo engarrafada com o nome de conservante saudável. É só colocar o rótulo e tudo está resolvido. Os fiscais dos órgãos da saúde pública precisam mandar seus filhos para estudarem fora, e nada melhor do que uma gorjeta para aprovar os produtos que irá matar, daqui a dez ou quinze anos, o máximo de consumidores. Por isso que o Estado não se preocupa em planejamento familiar. Prefere que cada vez mais pessoas precisem de remédios, médicos e hospitais. Geram impostos, e como diz o ditado: quanto mais cabras mais cabritos.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 04.04.2022 - 14h26min.



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