FOI ASSIM MESMO?
Poderia recorrer a um sonho onde o fazendeiro dizia que jamais chamaria seu bode de bode porque ele passava uma semana inteira para decidir cobrir as cabras. Bode que presta é bode com "BÊ" maiúsculo, mas esse aí não. Está mais para carneiro, completava "o sonhado" desaparecendo numa nuvem de fumaça.
Aí eu acordei com aquilo na cabeça e uma responsabilidade para cumprir, só que procurei a inspiração e ela havia sumido. Logo me lembrei que foi porque havia mostrado minha produção a uma pessoa que massageou meu ego. De onde você tirou isso?, perguntou-me, como sempre me pergunta quando lhe mostro um texto. Daquele semblante autista que visitamos ontem. Eu vi naquela criança o túnel em que ela está metida e entrei junto para desvendar sua mente. O menino com quatro anos ainda usa frauda e quase não fala, mas basta ver um nome que grava a imagem repetindo como se soubesse ler, e isso me levou a escrever sobre ele.
Essa história de capacidade cognitiva sempre me fascinou. Fico querendo entender o porquê de muita gente optar em ser fã de outra e não dela mesma, e por que não me enquadro no perfil de gastar dinheiro pulando em frente a um palco e nem me satisfazer gritando gol numa arquibancada. Acredito que foi por isso que ontem recebi umas visitas inconvenientes.
Com ternos pretos e óculos de sol em plena madrugada, bateram na minha porta. Quem é? É Drelis. Abri só um pouquinho. Acho que vocês erraram de apartamento. É com você mesmo! Queremos saber o motivo de não estar se enquadrando no perfil de consumo que seu poder aquisitivo permite. Eu me enquadro sim. Comprei... Já sabemos tudo sobre você através da sua declaração do imposto de renda. O comitê decidiu que você precisa gastar mais, sob o risco de ter seu salário rebaixado. Você é prostituta? Sim, por isso vim acompanhada desses homens armados sugar seu salário através de um final de madrugada perfeito. Mas... eu não pedi esse serviço. O sistema decidiu o que você deve consumir. Seu nível de testosterona subiu e precisa de uma válvula de alívio e eu sou essa válvula. Apresse-se porque tenho metas a cumprir. Mas por que isso? Faz um dia que seu cartão não é passado em nenhuma loja, e isso foge do padrão. Eu só posso estar sonhando, pensei. Acordei novamente um pouco suado.
Fui até a porta e não encontrei ninguém. Era muito real. Tomei água, matei uma barata que corria pela cozinha e, enquanto pisava na vítima do meu desprezo, a campainha tocou. Agora era umas pessoas de branco. Viemos aqui porque o sistema detectou haver um louco matando baratas na cozinha. Sou inocente, gritei. Senhor, já temos um mandado para recolher loucos, por isso é melhor o senhor desbloquear a entrada para melhor averiguarmos.
Entraram com uma maca e eu fiquei na sala, sem ação. Demoraram um pouco e regressaram trazendo a barata morta. Ele escapou, porém vamos levar a prova do crime para fazer o exame de corpo de delito. Aqui está a conta. Os paramédicos saíram e ainda deu para vê-los sendo acompanhados pelos dois homens de preto e a prostituta dando-me tchau.
Fechei a porta e arriei no sofá. Que madrugada! Adormeci por uns cinco minutos, entretanto fui logo acordado com uma explosão no equipamento do chuveiro a gás. Imediatamente tive a porta da varanda arrombada pelos bombeiros. Parecia que já haviam premeditado o incêndio. Fui amarrado a uma corda e saí pendurado no helicóptero. Como aqui no morro há muitos trabalhadores envolvidos com a produção e distribuição de papelotes, um dos tiros arrebentou a corda que me segurava. Ainda bem que eu estava quase rente a água e a queda foi macia. Nadei um pouco e logo fui tragado por uma baleia. Lá dentro, encontrei um cara que me convidou para perto da sua fogueira e disse: não se preocupe, daqui a três dias seremos cuspidos.
Heraldo Lins Marinhbo Dantas
Natal/RN, 06.03.2024 - 08h44min.
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