quinta-feira, 25 de agosto de 2022

TÚNEIS PARA A DOMINAÇÃO - Heraldo Lins

 


TÚNEIS PARA A DOMINAÇÃO


Ultimamente está difícil ir além da casca dos assuntos. A friagem, por exemplo, bajula-me para ser incluída no projeto de leitura, mas rejeito a ideia de falar dela, afinal, estaria dizendo o que todo mundo sabe: está frio.

Tenho que escolher algo que se identifique com todos, porém que não seja de modo superficial. A angústia é um tema recorrente quando estou com vontade de me aprofundar, todavia esse assunto também já se esgotou.

A vontade de comer, que sinto neste momento, pode ser um bom tema, desde que seja explicado que há diferenças entre fome e apetite. Dizem alguns especialistas que fome é um bocado de coisa que causa desconforto, principalmente, quando se está há meses com deficiência alimentar. O que se sente ao acordar, não passa de apetite. 

Sempre achei estranho que o humano precise abastecer a barriga pelo menos três vezes ao dia, ao passo que a visita ao banheiro só se dá uma única vez. Essa diferença de "três para um" é devido ao gasto com os movimentos, soube disso recentemente, e soube também que é necessário ingerir, diariamente, menos de cinco por cento de alimentos em relação ao nosso peso para ficarmos bem, enquanto o beija-flor precisa de vinte e cinco vezes o seu peso para obter o mesmo resultado. Daí veio-me a conclusão que é por isso que o beija-flor não tem tempo para fofocar.  

Quem observa um beija-flor, sabe que ele não está nem aí para conversinhas na calçada das pétalas: chega, come e vai embora. Se fôssemos beija-flores, nenhuma outra atividade, além da agricultura, seria desenvolvida: produzindo e comendo, produzindo... só pensávamos em saciar a nossa orexia. 

Imaginemos um garçom trazendo o pedido. No meio do caminho, entre a cozinha e a nossa mesa, ele comeria tudo. Acho que nem os cozinheiros se dariam ao luxo de entregar a comida. Eles a preparariam e logo engoliriam, por conseguinte, teríamos a gangue do feijão; a turma do arroz; associação em defesa do sushi, etc.

Para o aniversário de feijãozinho só seria convidado quem gostasse de uma boa feijoada. As grávidas seriam bem mais respeitadas. Mesmo com fome, teriam a barriga cheia e poderiam se candidatar ao cargo de presidente. Nove meses já seria tempo suficiente para um governo estabelecido no slogan do toma lá dá cá.  

Certo dia, um homem, muito sovina, resolveu não mais comer. Passados alguns dias, levando à risca seu projeto, veio a falecer. Uma pessoa, no velório, comentou: se demorasse mais um pouco, ele teria se acostumado. 

Essa necessidade orgânica de, constantemente,  ingerirmos alimentos, é a base dos conflitos. Seria bom se sobrevivêssemos apenas com ar, mas receio que isso também não resolveria a questão da violência, pois logo apareceria alguém com projetos privatizantes, e a sociedade estável, tão sonhada pelos poetas, não se tornaria realidade. Adquiram o ar do campo em sua própria residência, diriam os anúncios e continuariam: esse ar é produzido na floresta particular de fulano de tal. 

Com certeza, haveria brigas para tomarem a floresta. Ao invés de desmatá-la, todos lutariam para se apossar visando produzir o próprio ar. Ninguém pode respirar o ar que minha floresta produz, diriam os mesquinhos tentando impedir que o vento levasse sua produção. 

Então, para evitar a guerra, seria bom se fossemos bactérias anaeróbicas, assim, estaria tudo resolvido, certo? Errado! Mesmo nessa condição, uma das bactérias tomaria para si o papel de líder. Ela, com mania de dominação, encontraria uma forma de ventilar seus inimigos. As bombas, carregadas de oxigênio, destruiriam os ocupantes dos melhores tecidos necróticos abrindo vagas para seus filhos e filhas tomarem posse de todo o pus disponível.  


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 24.08.2022 - 16:54



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