sábado, 6 de agosto de 2022

SEM PINCEL - Heraldo Lins

 









SEM PINCEL


Podemos comparar o início de um texto com uma tela em branco em que se usa palavras, ao invés de tinta, para compô-lo com pinceladas de caracteres. Vamos começar com um homem sendo tratado na U.T.I. 

Seu semblante assemelhava-se ao de um cadáver e, ao falar, a flacidez tornava-se mais evidente perto da boca retocada com o branco da saliva grossa. Tanto os uniformes dos estagiários quanto o ambiente foram modificados pela crise de tosse do paciente. Seu escarro, vindo de uma tuberculose mal curada, salpicou de vermelho o quadro que estava sendo pintado. 

Uma foto no momento foi feita, impressa e guardada pela dourada da recepção. Ela, vestida no seu vinho uniformizado, lembrava-se do “azul-mar” que testemunhava todo final de tarde na passagem do continente para a ilha onde morava. 

No hospital especializado em outubro rosa, outros atendimentos também eram realizados tais como novembro azul e setembro amarelo. 

Quando não estava consultando, um dos médicos gostava de dar pinceladas de cores variadas no risco cirúrgico dos “cabeças brancas”, que por sua vez deixavam os “cabeças pretas” roxos de inveja. 

Naquele ambiente, cheio de cores, os funcionários da limpeza diziam: a coisa está preta, referindo-se ao tempo decorrido sem ver a cor do dinheiro, mas isso não era motivo para desistirem de tirarem o marrom do chão antiderrapante. Uns varriam com suas amarelas, enquanto outros abriam os azuis para colocar o lixo. 

É triste ver a anemia barrar o vermelho, escrevia, no prontuário, o branco. Apesar do verde ser uma cor muito querida dentro de um contexto ecológico, ela é malvista no rosto humano, por outro lado, aplaudida quando é num camaleão.

A recepcionista, depois de guardar a fotografia, foi se encontrar com os seus. Mesmo fazendo o percurso de volta para casa todos os dias, ela não deixa de se emocionar ao avistar a cor marfim prestes a pisar. Observa a água cortada pela embarcação laranja a poucos metros do píer cerejeira. Ao lado dela, uma amarela praticava o exercício de se tornar invisível com seu marrom-claro cobrindo o corpo de olhos amendoados, cabelo amarrado em coque e os brancos escondidos pelo rosa-claro dos lábios. 

A embarcação é comandada por uma cor de fogo, com um branco na cabeça enfeitado por detalhes pretos. Na frente do quepe, um brasão de prático da capitania dos portos o distingui dos demais tripulantes. O ruivo conta que fica assustado quando se deita lembrando-se do escuro da barriga do peixe que o hospedou por três dias. Nada a ver com Jonas, mas ele também não admite que alguém duvide. 

A dourada desembarcou sem se dar conta que os pequenos a esperavam debaixo do verde de uma árvore comendo o roxo natural da ameixeira. Abraçou-os sem enxergar que cor era o sentimento de mãe para com eles, e assim o quadro permaneceria sendo retocado pela dúvida até mesmo ao adentrar na branca sem reboco. 

Ao jogar a bolsa rodadeira no multicolorido macio, sentiu necessidade vaidosa de aproximar um vermelho vivo nas unhas enquanto preparava a cor laranja na cuscuzeira, o amarelo e o branco estrelados e o preto quente com o branco de vaca. Duas colheres de marrom mascavo foram adicionados ao bule. 

Quão dinâmico é o quadro da vida, pensou, e chegou a uma conclusão logo desfeita: o que não tem cor não existe. E os sentimentos? Não sabe responder, porém, vai para a praça oferecer, aos rosados de fora, o belo quadro em troca de algumas verdinhas. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal RN, 06.08.2022 - 11:27




Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários com termos vulgares e palavrões, ofensas, serão excluídos. Não se preocupem com erros de português. Patativa do Assaré disse: "É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”