segunda-feira, 29 de agosto de 2022

SALPICANDO O ENTENDIMENTO - Heraldo Lins

 


SALPICANDO O ENTENDIMENTO 


Vamos começar, mais uma vez, o que sempre estamos começando. Geralmente vai das duas da madrugada até bem mais tarde. O trabalho consiste em pregar entre três a quatro mil caracteres na página virgem, engravidando-a com ideias. É uma atividade técnica que exige emoção misturada com razão sem, necessariamente, definir qual a proporção entre elas.  

Fico a imaginar o quanto tem para ser dito e que não aparece. É uma máquina criando e a outra destruindo. “Nesse moído”, volto a dormir. Enquanto durmo, tento fazer sonhos, mas nem sequer um pesadelo aparece. Agora fico preso nas entrelinhas da realidade tentando entender as dificuldades do dia a dia que chegam em finíssimas camadas de alegria, decepções... 

Saio do corpo e fico digitando o que será lido como fantasia num descuido corriqueiro, porque não se pode fazer nada, a não ser dormir enquanto se dorme. Será loucura? Bem, deixemos esse conceito para Freud definir e vamos tocando as letras. É um jogo bem divertido. Consiste em ir criando interligações sem um propósito definido. Será o famoso fluxo de consciência? Para tirar o “foco” do conceito de loucura, basta dizer que muitos fizeram isso, aí passou a ser arte.  

O padrão muda quando se faz referência a alguém famoso, por isso preciso deles para minhas justificativas. Ninguém pode adentrar em um terreno construído sem saber que ali já foi pisado. Meu respeito a todos os loucos que tiveram como expressar suas loucuras sem serem presos. 

Tenho que exercitar a minha dentro dos padrões aceitáveis, senão... Nem sei o que aconteceria se passasse a publicar resenhas dos que falaram sobre religião e o prazer carnal, porque cada época tem seus respectivos caçadores de recompensa, e esse é o perigo.

Lá se foram algumas horas de trabalho já com o sol mandando recados de claridade. Olho para o grande deserto branco a ser percorrido, sem esquecer que por trás vem correndo a releitura doida para ser explicada. Veio-me, por várias vezes, a palavra "miserável" tentando definir essa luta desigual entre a vontade e a capacidade de discernimento.  

Este trabalho é feito entre os escombros das letras enferrujadas pelo desuso. Lá estão elas escondidas nos cantos das palavras renegadas durante todo o processo de criação com medo de serem descobertas como sendo as grandes maníacas da página. Há uma cilada sendo preparada para pegar desprevenidos que permanecem olhando para os símbolos sem poder desgrudar os olhos com medo de não terem mais acesso às mensagens aleatórias. Não vou atrás dessas mensagens porque não me interessa saber quem é que estampa o absurdo nas vitrines. 

As desgraças tornaram-se rotina. Sempre há conexão com todos que sofrem, por isso já não há espanto com o sofrimento alheio. Está em todas as mentes como se tocasse uma música velha, escandalosamente repetida em busca de uma plateia diferenciada. 

 “O fracasso a gente esconde”, disse a mulher olhando para o marido desempregado. Estavam em plena avenida sem dinheiro e muita fome. O que diriam os colegas do ginasial que participaram da festa de casamento. Poucos meses se passaram até a ruína total da família. Transeuntes apressados sem lhes notar. Cada pessoa tem um destino, ninguém fica no meio da passarela esperando que digam qual rumo tomar. A cor cinza do pessimismo apresenta flores murchas em um jardim de ervas desbotadas pela angustia do desespero contínuo. Aqui também é assim: cada um tem total liberdade para interpretar do seu jeito.  


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 29.08.2022 – 14:21



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