O estranho caso de dona Dodó, uma
mulher aquém de seu tempo
Era domingo de Missa, por volta das dez horas da manhã, quando um pedinte bateu à porta de dona Dodó. Diferente da
maioria dos mendigos, era jovem, pouco mais de
trinta anos, barba cheia, cabelos desalinhados, vestes surradas, calça de camuflagem e casaco militar desfigurado pelo tempo.
— Uma esmola, pelo amor de Deus! Uma esmola pelo amor
de Deus... – Cansado de andar e mortificado pelo
vazio do estômago, deixou-se cair sentado no
batente, encostou a cabeça no portal, fechou os olhos e, mesmo não sendo sua
intenção, passou a ouvir a conversa do interior da
casa. Não adiantaria chamar. Não iriam escutar. Quando se calassem, chamaria.
— De nada adiantarão as flores, os mimos, os bilhetes
perfumados... Eu, Eudóxia Cavalcanti, com I,
jamais deixar-me-ei enganar com os vossos galanteios,
senhor Matos de Aguiar. – Houve breve silêncio. O pedinte fez menção de levantar-se, mas desistiu quando voltou a ouvir a
mesma voz de mulher.
— Não, meu caro senhor. Sinto-me, deveras, lisonjeada,
contudo, não posso alimentar suas esperanças.
Seria leviandade da minha parte se o fizesse. Será sempre bem-vindo a esta casa, para um chá e uma conversa
amena entre dama e cavalheiro, jamais para
tratar de cousas do amor. Passe muito bem, senhor.
— Uma esmolinha, pelo amor de Deus! – falou o mendigo, aproveitando
o silêncio.
A dona da
casa apareceu à porta, causando-lhe a impressão de estar vendo coisas do outro
mundo.
— Sim! Pois não, senhor. Qual é a sua graça e o que deseja?
Deixemos o pedinte boquiaberto com a imagem e o palavreado de dona Dodó, para
conhecermos um pouco desta singular figura chegada a Mericó quando tinha quinze
anos. O pai, Sr. Cavalcanti, viera da capital para trabalhar nos Correios.
Homem sereno, amante dos livros e apaixonado pela filha. A relação entre os
dois era de encantamento, cumplicidade e profunda amizade. A esposa, mulher
exemplar e exímia costureira, sempre agradecia a Deus por tê-la presenteado com
uma família tão harmoniosa e feliz.
Afora o tempo em que estava na intimidade do lar, Dodó era vista como uma pessoa
estranha. Demonstrava esmerada educação, mas parecia alheia ao mundo, em
constante estado de introspecção, melancólica, fria nas relações interpessoais,
sempre erguendo barreiras em volta de si. O respeito à sua família a
resguardava dos mexericos mas, vez por outra, se ouvia comentários do tipo “menina
educada, mas, esquisita”; “antipática”, “parece que vive no mundo da lua”.
Preocupado, o pai procurou auxílio médico, mas, diante da falta de um diagnóstico preciso, desistiu da busca acreditando que o seu imensurável sentimento
seria suficiente para auxiliá-la nas suas dificuldades. Assim, viveram, com
Dodó aventurando-se naquele mundo estranho onde ficavam a escola e tudo o que
não era a sua casa. Lá fora, fazia apenas o indispensável, retornando o mais
breve possível para o conforto e a segurança do seu universo. Nele estavam seu pai, seus livros e sua mãe.
Às
primeiras festinhas fora com Coca, vizinha e única amiga. Achou a música insuportável,
ensurdecedora. Nada de danças, nem de namoricos. Nunca dissera isso mas, devido
ao seu jeito, deduziam não haver em Mericó um jovem à sua altura. Estavam todos
do outro lado da sua intransponível muralha. Por estes e outros comportamentos,
diziam que tinha «espírito de rica» e que “só queria ser as pregas de quelé”. O pai, na sua empatia, sofria as dores silenciosas da
filha e, por mais de uma vez, chorou ao vê-la dormir, frágil criança na solidão
da sua cama de solteira sem irmãos, sem pretendentes e, futuramente, sem pai e
sem mãe.
Concluiu brilhantemente o curso ginasial e, por se recusar a estudar em outra cidade,
encerrou seus estudos, dedicando-se à leitura e ao ofício da mãe, cuja morte
abalou severamente a sua saúde. Só não mergulhou em irreversível depressão
porque o pai, já aposentado, a conduziu firmemente, amparando-a, fortalecendo-a
e fazendo-a ressurgir da escuridão para a vida.
Após este trauma, algumas das suas esquisitices se acentuaram, como: valorizar excessivamente
o sobrenome Cavalcanti com “I”, usar o padrão culto da língua para todas as
situações, travar longos diálogos com pessoas imaginárias, cultivar normas de
etiqueta e vestir-se à moda antiga. Mas como nunca saía de casa, quem
presenciava estes desvarios eram o pai e a vizinha e amiga Coca.
Com o passar dos anos, foi aclamada como a melhor costureira de Mericó e região.
Esquisita, às vezes parecia uma figura saída do outro mundo e a cada dia suportava
menos que a chamassem de Dodó. Ninguém a
tratava assim e, quando isso ocorria, a reação era imediata:
— Meu nome é Eudóxia. Eudóxia Cavalcanti. Cavalcanti com i.
Quando a base de apoio de uma pessoa se encontra fora dela, o risco de desmoronamento
é muito alto. Foi isso o que ocorreu com dona Dodó em relação ao pai. Já com a
idade avançada, chegou sua vez de partir e o fez, notoriamente, preocupado com
o destino da filha. Conhecedor das suas fragilidades, suas preocupações eram
pertinentes. O pior aconteceu, não obstante a amizade e os cuidados da amiga
Coca, já casada e com filhos crescidos, mas sempre presente.
A perda do pai não lhe causou aquela dor comum às demais pessoas. Seu comportamento
assemelhou-se ao de quem usa uma chave reversora para alternar situações.
Girando a chave, teria ela trocado o mundo onde vivia, apesar das constantes
fugas, pelo seu mundo privado, incompreendido e incompatível com a vida real.
Nem chegou a interromper os trabalhos de costureira. Era como se nada tivesse
acontecido. Coca, ficando por dona da casa, nos primeiros dias, logo percebeu
que a amiga não estava bem. Chegou a essa conclusão ao vê-la costurar o vestido
de uma cliente de modo avesso à encomenda. Não havendo mais o que fazer, deixou
para lá, mas tentou chamá-la a si.
— Dodó, minha amiga, não era assim que a freguesa queria o vestido. Mas, termine
assim mesmo e tenha mais cuidado com os outros.
— Maria do Socorro, se você permite que a tratem por alcunha, eu não! Meu nome
é Eudóxia. Eudóxia Cavalcanti. Cavalcanti com i.
A amiga estranhou a reprimenda. Era de casa e, na intimidade, todos a chamavam assim. Para não contrariá-la, calou-se e passou a fazer sua vontade. O
que não teve como contornar foram os estragos feitos nos tecidos das freguesas.
Afora os que conseguiu esconder, foram transformados em peças tão antiquadas que
ninguém ousaria vesti-las.
A partir daqueles dias, romperam-se os liames que permitiam o trânsito entre os
seus dois mundos, passando
dona Dodó a viver, integralmente, a sua realidade. E, livre dos conflitos e
censores internos, sentiu-se à vontade para ir à bodega, à feira e, até,
passear pelas margens do rio ou pela praça, onde gostava de sentar para usufruir da brisa do entardecer.
As primeiras vezes que saiu à rua, após o ocorrido, constituíram dolorosos momentos
para a amiga. Pessoas, indiscretamente, corriam às portas e janelas e meninos
seguindo-a, transformava uma simples ida à bodega em deprimente cortejo. Dona
Menina sentiu-se extremamente penalizada ao vê-la daquele jeito, vestida como
uma gravura de livro de história adentrando, altaneira, na sua mercearia. Com
muito esforço, a boa senhora a cumprimentou, reprimindo as lágrimas:
— Minha filha, que Deus a abençoe!
— Senhora Etelvina Raposo, preciso de alguns aviamentos para costura, meia dúzia
de pães e uma garrafa de um bom vinho do Porto.
Sem lembrar da última vez que alguém a chamou pelo verdadeiro nome, dona Menina
colocou a caixa de aviamentos sobre o balcão e, atordoada, pediu-lhe para
escolher o que desejasse. Embrulhou os pães e, aproximando-se, disse-lhe baixinho:
— Minha filha, agora esse tal vinho do porto, não tem não. Nunca vendi e nunca ouvi
nem falar. Aqui só tem Cajuína e vinho de Jurubeba, em garrafão. Mas não compre
isso não, minha filha. Faz é mal à saúde!
A amiga Coca a acompanhava no seu dia a dia, corrigindo uma coisa aqui, outra ali,
ajudando-a na administração da casa e a tomar seus remédios. Doía muito vê-la
tratada como louca e, até, servindo de chacota a meninos mal educados e adultos
insensíveis. Dodó era doente, sim, mas não fazia mal a ninguém e, mesmo com
suas esquisitices, era uma boa pessoa.
Voltando ao mendigo, vamos encontrá-lo visivelmente perturbado com a estranheza
da mulher vestida de um jeito diferente de todas as pessoas que já vira.
Parecia uma visagem. Mesmo assim, era muito bonita.
— Senhor, sua graça e o que deseja, por favor!
— Senhora, tô pedindo uma esmola pelo amor de Deus.
— Senhora, não! Senhorita Eudóxia Cavalcanti. Cavalcanti com i.
— Sabe, dona, é essa secona grande... A gente sem meio de vida, a fome bate, aí
o jeito é sair por aí pedindo.
Abrindo a porta de baixo, dona Dodó, com gesto teatral, convidou-o a entrar.
— Vinde, senhor. Entrai, sentai comigo à mesa e saciai a vossa fome.
Sem jeito e esperando encontrar a pessoa que há pouco conversava com a dona da
casa, atravessou a sala de estar, o longo corredor, chegou à sala de jantar e, seguindo
instruções da anfitriã, sentou-se à mesa. Ela, após dispor pratos, talheres e
alimentos, sentou-se e livrou o convidado dos incômodos da etiqueta.
— Teu aspecto fala por ti, senhor. Decerto, vindes da guerra e, à nobreza do guerreiro
não é lícito impor os ditames da etiqueta. Comei, pois, do que quiserdes e como
bem quiserdes, sem cerimônias e, se desejardes, com as próprias mãos.
— Tem razão, dona. Escuto falar de guerra e fico pensando se lutar contra soldado
inimigo é pior do que lutar contra a fome.
— Mais do que valente guerreiro, um filósofo! A que família pertence o jovem senhor?
— Meu pai é dos Costa, lá do Saco de Dentro, perto de Riacho.
— Costa, de Duarte da Costa, uma família nobre. Sou Cavalcanti, com i, tradicional
família italiana, citada por Dante Alighieri na Divina Comédia. No século
dezesseis, o jovem Filippo Cavalcanti, chegando daquelas terras, se fixou e
constituiu família em Pernambuco e cá estou, fruto desta monumental árvore genealógica.
Após farta refeição, satisfeito e encantado com aquela mulher, cujo jeito de vestir,
falar e comer nunca vira igual, o pedinte seguiu em sua companhia pelo corredor
até a porta onde, mais uma vez, agradeceu-lhe. Instintivamente, inclinou-se e,
respeitosamente, levou a mão da senhorita Eudóxia aos lábios e beijou, como
faria um cavalheiro.
De uma janela, ou calçada, alguém viu a cena. Foi o suficiente para circular pela cidade que dona Dodó, além do juízo, perdera a vergonha. Nos tempos da mocidade esnobara os rapazes de Mericó, agora, no caritó, andava de chamego com um esmoler. Coca ficava triste com estes comentários. Dona Dodó, por não ser normal, vivia alheia ao que os normais faziam, diziam ou pensavam a seu respeito.
Não sabemos se dona Dodó era feliz. Decerto, era livre. Livre para fazer coisas
como comprar bananas na feira vestida como uma dama do século XIX, transformar
Ki-Suco de uva em “vinho do porto” e ter sempre uma companhia amiga, elegante e
galanteadora a acompanhá- la em seus jantares e passeios vespertinos.
Aldenir Dantas
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