segunda-feira, 15 de agosto de 2022

ESCRAVO TECNOLÓGICO - Heraldo Lins

 








ESCRAVO TECNOLÓGICO


O que fazer às três da manhã se quase ninguém está acordado nesse acampamento? Só me resta ouvir o vento cantando para a claridade do último banheiro ocupado. 

Há também gemidos surdos que denunciam o estado de alerta na maioria dos derrubados. Pergunto-me se será necessário exterminar o homem demente ou ter que ouvi-lo, pacientemente, chamar todo mundo de cão. Estou fora de alcance das suas palavras, mas escuto, ao meu lado, o barulho de sono profundo. 

No meio desse desastre nuclear, entretenho-me com pais perdendo cabelos e crianças se deformando aos poucos. Cada dia surge uma novidade mais tenebrosa do que outra. Essa falta de sono deve ser o efeito que meu corpo encontrou para dizer que também estou doente, o que de fato já sei há bastante tempo. 

Estamos isolados para sermos estudados. Ontem Zatrusco foi fuzilado ao tentar fugir no momento em que recebíamos a ração do helicóptero. As mulheres, mais gravemente feridas, estão prontas. Disseram-me que serão dissecadas vivas para saberem o que lhes causou a falta de dor. 

Matei uma das crianças que desenvolveu caninos iguais a cães. Queria me comer vivo. Minha mão esquerda foi dilacerada, mas ainda bem que ela distraiu-se ao mastigá-la deixando-me com tempo para esfaqueá-la.

Amanhece o dia e percebo grunhidos do lado de fora do galpão. Levanto-me para contar os mortos. Minha função é enviar relatórios diários para o comando geral, inclusive sobre os que não param de chegar. Não sei até quando vou resistir aos ferimentos que supuram, constantemente, nesse meu ser metade gente metade máquina. 

Continuo perdendo a noção do tempo. Amanhece e de repente já é noite para logo em seguida amanhecer. Nesse momento jogo o relógio fora. Aborreço-me com a inutilidade de contar o tempo. Para que quero saber disso? São muitas perguntas que faço e não encontro ninguém para respondê-las. 

Estamos condenados a desaparecer. Nem falo morrer, porque morto já estamos. O cuidado maior é com as crianças que continuam se transformando da noite para o dia. Algumas estão comendo fezes de quem consegue defecar. Quero desistir desses relatórios, mas fazer o quê? Se não os fizer perco o juízo e o restinho de conectividade com o mundo que se diz normal.  

As feridas, em forma de bolhas, na minha cabeça estouram expelindo fumaça preta. O odor é de ovo podre, disse-me uma pessoa que ainda mantém o olfato. Para mim é só uma fumaça que me agrada com cócegas no crânio. 

Um homem sem a carne do rosto chega para denunciar que as crianças devoraram o que restava da sua mulher. Ele conseguiu fugir dos meninos que andam em bandos na floresta. Comem de tudo, inclusive uns aos outros. Com certeza estão nos observando já que estamos em campo aberto. Entre as crianças que os atacaram estavam dois dos seus filhos. O mais velho tinha oito anos seguido pelo de cinco. Adquiriram força de adultos. O helicóptero capturou dois deles para análise. 

Entrego o relatório das últimas vinte e quatro horas ao drone com compartimento de bagagens. Ele voa alto chamando a atenção dos desmiolados. Uma mulher está me perguntando se pode comer as lagartinhas brancas que estão saindo de onde era meu nariz. Sim pode! 

Meus olhos foram substituídos por duas câmeras. Antes de vir trabalhar aqui fui um dos readaptados. Passei por uma mudança de membros, inclusive na minha mente há chips integrados com neurônios. Já mandei um relatório à parte falando da falta de sono, mas parece que eles me querem "aceso" o tempo inteiro. 

Mandem-me mais livros, pedi-lhes anotando os cem que arquivei esta semana na pasta de conhecimento. Eles me enviam através de um dispositivo de mensagem que ocupa parte do meu cérebro. Na verdade nem preciso lê-los, apenas revisá-los a uma velocidade de mil páginas por segundo. Eles enviam-me e fico sabendo de tudo na hora do download. Chamam-me de inteligência artificial número infinito. Se o chip for retirado, o conteúdo vai junto e volto a ser normal, por isso, prefiro assim. 



Heraldo Lins Marinho Dantas 

Natal/RN, 15.08.2022 – 15:42



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