ENCONTRO DAS ÁGUAS POPULACIONAIS
Posicionou-se por trás da jovem que estava na fila da farmácia e ficou a olhar para seus longos cabelos. Ela voltou-se e o encarou enquanto ele retirava a máscara, e, de supetão, beijou-lhe. Ela, por trás dos óculos grandes de lentes finas, ruborizou-se. Virou o rosto beijado e ficou a disfarçar o arrepio do coração acelerado.
A moça do caixa observou a cena e ficou com água na boca, pois queria também um pouco daquele dengo. Desejava ardentemente que ele a assediasse, e, quando isso acontecesse, faria tudo para passar-lhe o contato.
Ele, com cara de casado, tornaria o encontro bem mais excitante, pensou ela olhando-o, disfarçadamente, de cima a baixo. O trabalho, longe de casa, a deixou com uma grande capacidade de poder escolher homem como num cardápio, e isso ela fazia muito bem, contudo, uma voz lhe dizia: não se meta nisso. Percebeu, enciumada, que os dois já entabulavam conversa. Nesse momento, sem saber porquê, lembrou-se de ter sonhado com a casca da morte. Nunca imaginou que a morte tivesse casca. O sonho se passou dentro d'água numa correnteza giratória onde o rio circulava entre paredões de pedras pretas cobertas por capins-brancos, todavia, ela se afogava, aos poucos, num outro distinto rio voador. Em ato contínuo, acordou lembrando-se da mãe que estava perdendo a memória. Que coisa estranha, disse para si.
Uma senhora, no meio da fila, pensava nos netos. Estava a comprar antibiótico com a esperança que dali a pouco estaria em casa, porém, ansiava que o seu genro não aparecesse por lá. Não gostava dele, principalmente quando chegava com bafo de álcool, não raro de acontecer.
De tanto ficar em pé, sua erisipela começava a coçar e ela não queria se baixar para fazer a vontade da carne. Apoiava-se na perna sadia e reclamava por que não havia mais de um caixa aberto.
Sua vida era viver em filas, além das farmácias havia a dos supermercados, bancos, consultórios... para ela, o mundo se resumia em estar sempre atrás de aglomerados humanos, nada obstante, dava graças a Deus porque significava que ainda tinha um certo poder de compra. Pior era Silaraia, sua amiga de infância, que permanecia presa por tentar passar com pasta de cocaína no aeroporto. Aquela só vivia se vangloriando da vida boa de turista. Bem feito!, disse ela disfarçando uma coçadela com o outro pé.
Um idoso, que estava no guichê, atrapalhava-se com a senha do cartão deixando a moça do caixa sorrindo num surdo ranger de dentes. Havia sido treinada para suportar aquele engarrafamento de pessoas. Se colocasse um rosto sisudo, correria o risco de ser demitida. O “senhorzinho” só pensava em se lembrar dos números e do filho que mais e mais dizia: papai, anote, e ele, mesmo obedecendo ao filho, esquecera onde havia posto as anotações.
A bela e atenciosa, do outro lado do vidro, era vista, pelo velho "esquecidor", como sendo sua torturadora. Se fosse há vinte anos, quiçá, tentaria um flerte, mas sua diabetes alta e a conta bancária baixa não lhe permitem maiores extravagâncias.
Ao chegar em casa, colocou as caixinhas em cima da mesa e chorou lembrando-se da falecida esposa que o acompanhava quando organizava a tabela de horários para tomar os comprimidos.
Já no apartamento, a amiga de Silaraia olhava para a sala vazia e sentia o quanto tinha mentido em suas mais novas edições. Seus netos, genro e filha jamais haviam existido. Sua condição de solteirona a fazia sofrer por não aceitar estar sozinha no mundo, e a única alternativa era mentir para si.
A atendente do caixa, desiludida, percorria o caminho de volta para casa com sandálias de dedo usadas depois de guardar o disfarce de empoderada.
A modelo, de cabelos longos, ainda hoje se mantém felicíssima pelo marido ter aceitado fazer parte da fantasia de assediá-la e beijá-la na frente de todo mundo como se fossem desconhecidos.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 11.08.2022 — 14:17
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