ANO DA DISSECAÇÃO DA ALMA: 1877
Terminei de ler, ontem, o livro Anna Karenina de Leon Tolstói. Oitocentas e tantas páginas de suspense e cansaço. O que me fez adentrar àquela selva de palavras, foi a curiosidade em saber o porquê desse romance ser tão festejado, e realmente comprovei: merece infinitos aplausos.
Dentre outras genialidades, o autor nos brinda com o pensamento da cadela Laska, pertencente ao proprietário de terras, Levin. Consegue-se ter acesso à concepção da cachorra quando ela questiona as ordens do seu dono, como se o animal fosse gente. Essa é uma demonstração do verdadeiro domínio da escrita criativa.
Através dessa habilidade, Tolstói conduziu-me para o leito de morte de Nikolai, Irmão de Levin, que de tão doente me fez torcer pelo seu sepultamento. Quando todos pensávamos que Nikolai havia morrido... ”ainda não foi dessa vez,” disse ele de supetão, caracterizando-se de autêntico bêbado chato.
O autor fica a "brincar" entre a vida e a morte do alcoólatra, motivo que me fez desejoso de algo mais interessante. Só que não há momentos de alívio. Cada personagem sofre o que deve sofrer e leva consigo o leitor. O difícil não é só ler esse "tijolo," mas fazê-lo sem se envolver com a situação em que cada um se encontra.
Recebi uma grande chacoalhada no cérebro que ainda estou perplexo. Há um momento em que um personagem falido diz que não está em condições de mandar cantar um cego. Lembrei-me que nas feiras livres da minha cidade, aqui e acolá, havia um cego cantando em troca de esmolas. O interessante é a relação criada pelo autor entre a linguagem dos russos daquela época com a cultura da mendicância atual.
O mais notável ainda é percebermos que em qualquer época ou lugar o ser humano repete-se nas suas mazelas e virtudes. Muda o espaço, o tempo, a estratificação social, mas continuamos sendo vítimas da condição humana que nos faz carregar ciumeiras, desajustes, dúvidas existenciais, inclusive nas crianças.
Lá pelo meio, achei que o autor estava “enchendo linguiça,” mas descobri que os prisioneiros da sua pena deveriam ser acompanhados sem maiores alardes. Há um freio do escritor que fala sem se expressar: ou se acompanha o ritmo ou não se vai adiante; o pré-requisito é se envolver, caso contrário, abandone a leitura.
Mesmo que deixemos o livro fechado por vários dias, o pensamento continua voltado para a história. Mas é necessário o afastamento para se manter com as faculdades mentais funcionando, é o conselho que dou.
Comecei a lê-lo analisando as artimanhas que Tolstói utiliza para prender o leitor, só que do meio para o final esse meu cuidado perscrutador foi seduzido pela trama tão bem articulada.
Para se ter uma ideia da lentidão da obra, a narrativa continua vagarosa até mesmo quando Liven vai buscar um médico para fazer o parto da esposa. Minha vontade, escutando os gritos de Kitty, era que ele trouxesse o médico à força, ideia também compartilhada pelo personagem, porém, deixando-me contrariado por não ter sido executada.
O autor dá corda para depois tomar de volta. Nessa hora, confesso, já estava eu totalmente dominado. Tentei, sem êxito, adivinhar cada final de capítulo, acho que foi por isso que sofri demasiadamente. Não acertava um, é tanto que fiquei satisfeitíssimo quando me identifiquei com o personagem comentando que enquanto muitos morrem o médico se penteia. Comparei com a fila do SUS. Respirei aliviado pela chance de, juntamente com o personagem, criticar o sistema de saúde.
No romance, até quem morre sofre a malquerença dos vivos, nesse caso, expresso na fala da mãe de Vronsk que destila um ódio extravagante à ex-amante do filho, a já “suicidada”, Anna. Até morta, a mulher quase louca não tem sua alma deixada em paz, fazendo-me lembrar do caso dos assassinatos em São Gonçalo do Amarante no RN, em que as autoridades tiveram que enterrar o criminoso em local "incerto e não sabido" para evitar que familiares das vítimas tentassem uma vingança no corpo sem vida. A todo momento, o autor despertava-me recordações, e, ao mesmo tempo, negava que o romance tinha esse propósito, claro, eis a genialidade do escritor em disfarçar.
Não é à toa que Tolstói ficou rico escrevendo. O cara sabia o que estava fazendo, porém, quando os personagens pensam, o autor utiliza, demasiadamente, a frase "de si para consigo" chegando a me fatigar, mas nem por isso tira o brilho da obra. Reconheço que escrever mais de oitocentas página sem deixar pelo menos uma brecha para que eu possa me deliciar cutucando a falha, é dificílimo e, mesmo assim, isso não tira o mérito da obra.
Acredito que só consegui terminar essa empreitada porque fui ajudado por uma narradora que encontrei no YouTube. Baixei a narrativa e fiquei escutando-a em velocidade acelerada enquanto acompanhava a grafia no livro. Um fato interessante é que o livro que eu estava lendo foi traduzido por um, e o áudio que escutei era de um outro tradutor. De quando em quando eu detectava termos diferentes com os mesmos significados, o que nem de longe me atrapalhou.
O que gostei mesmo, além da cadela pensante, foi de uma frase dita por Levin: "o respeito foi inventado para esconder o lugar vazio onde deveria estar o amor."
Agora sim, sinto-me aliviado em obedecer a Tolstói que passou, em forma de pesadelos, a madrugada inteira insistindo que eu publicasse minha experiência com o seu livro, e ainda acrescentou: não se esqueça da frase inicial. Tudo bem! aí vai o início do romance, senhor Liev Nikoláievitch Tolstói: “todas as famílias felizes são parecidas entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira.”
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 09.08.2022 - 16:44
Gostei de suas impressões sobre a obra, Heraldo. Mostra que apesar de árdua a tarefa, valeu a pena persistir na leitura.
ResponderExcluirÉ verdade, Gilberto. É uma obra para se passar semanas mastigando cada capítulo. Valeu muito a pena, é tanto que hoje amanheci com esse texto praticamente pronto. O maior tempo foi gasto em aparar os excessos, mas todo o romance ficou martelando na minha cabeça e só me vi satisfeito quando o vi publicado. Obrigado.
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