quarta-feira, 20 de julho de 2022

CERTEZA DE NÃO TER CERTEZA - Heraldo Lins

 


CERTEZA DE NÃO TER CERTEZA


Olha para a neve e avista um grupo de porcos selvagens cavando. Quer ignorar aquela realidade e se manter desconectado das interferências mundanas, mas aqueles porcos estão destruindo sua plantação. Se os deixar vivos, perde o investimento. Além do frio, ter que caçar javalis não é brincadeira. O bicho é perigoso e pode estraçalhá-lo com apenas uma dentada. E são muitos, pelo que se vê.

 Procurou isolar-se para viver distante dos aborrecimentos, e aqueles porcos não sabem disso. Andam em vara farejando comida. Devem ter me farejado, exclamou pensando em usar o rifle com pontaria de longo alcance. Seu passado veio à tona misturado com aqueles porcos. Eles têm um passado em formato de mamutes, pensou. Ali estava ele diante da pré-história. São duas espécies se encontrando e lutando por batatas. Usa a luneta do rifle para constatar que a fêmea da frente fita-o. Se apertar o gatilho deixará alguns órfãos e se não apertar ficará no prejuízo. 

Era para ter ficado naquele balneário. Não gostava do barulho de lá, mas pelo menos não tinha porcos selvagens, relembra a decisão tomada há dois anos. Tobogã, roda gigante e um parque aquático. Enjoou de tudo aquilo. A manutenção dos trenzinhos, tirolesas, aquário, funcionários e atestados médicos. Ali não quer voltar. 

Sente saudades da época de professor. Lembra-se de ter ensinado sobre a vida selvagem e, na barulhenta e protegida sala de aula, podia imaginar coisas, mas nem se compara com a vida selvagem que está testemunhando. Era um rapaz civilizado entendendo, inocentemente, que para dispor de alimentos só bastava ir às compras. Pensa em vender a propriedade e voltar a morar no apartamento perto de tudo, menos dos porcos selvagens. 

Lembra-se das sirenes destruindo seu bem-estar, logo cedo. Seria muito bom se pudesse voltar ao restaurante que mantém alugado à beira da praia. Lembra-se das banhistas se dirigindo e perguntando-lhe sobre o cardápio. As belas turistas expressando interesse além da comida. Que bom era estar em contato com aquelas deusas. Os bêbados chatos o fizeram desistir.

Poderia retornar ao clube de hipismo onde sua filha está administrando-o. O marido deve ainda ser viciado em jogo de pôquer. Não tolera vê-la sofrer, e ficar longe parece ser a melhor opção. Se pelo menos ele morresse de acidente. Isso não pode acontecer para que não o acusem como sendo o mandante do acidente. Se isso acontecer sua única filha o enterraria de vez.

Vai comprar um motorhome de última geração com três televisores, banheiro, cama, cozinha, e vai sair conhecendo os territórios nunca antes visitados. Onde houver estrada irá ver o que tem no final. E quando um pneu furar no deserto em pleno meio-dia?... ou em noite de chuva?...  e os assaltos na estrada? ... quando o motor pifar?... vou escolher  viajar de avião. E a espera nas filas, o barulho das turbinas, conexões, turbulências?...  Pensando bem... vou adotá-los... é só um punhado de porquinhos simpáticos. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 19.07.2022 - 10:40




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