domingo, 19 de junho de 2022

VIAGEM PELO SERTÃO DO CEARÁ - Heraldo Lins

 


VIAGEM PELO SERTÃO DO CEARÁ


(Texto inspirado no romance “O QUINZE” de Rachel de Queiroz.)


Entrei na biblioteca e deparei-me com muitas pessoas olhando-me. Um senhor, por nome Quinzinho, veio fofocar sobre uma paixão entre Conceição e Vicente. Eu nem sabia que esses dois eram primos, e para dizer a verdade, havia esquecido que eles ainda estavam vivos. Quem confirmou que sim, foi a proprietária do sítio Aroeiras, dona Maroca. 

O criador de gado e a professora vieram me pedir conselhos sobre o casamento, entretanto, eu disse que era melhor perguntar se Vicente preferia se casar com ela ou com Mariinha Garcia. Conceição não sabia que havia concorrência, por isso, achou melhor ser mãe adotiva de Duquinha que lutar por alguém sovina e namorador. O desgosto dela foi grande! Ainda lembro-me quando direcionou sua paixão frustrada para ajudar às vítimas da seca.  

Eu, particularmente, fiquei muito interessado em saber se Conceição era uma verdadeira socialista, todavia, Quinzinho não quis se comprometer. Desviava a conversa falando sobre os retirantes que foram isolados no campo de concentração por tentarem comer carne da vaca já paquerada pelos urubus. A prisão foi determinada por sentença proferida em favor das aves que quase perderam a carniça para a concorrência. 

Durante a conversa, fomos interrompidos, várias vezes, por Chico Bento, um ex-vaqueiro e atual retirante. Ele queria, junto com sua família, degustar uma cabra que matou a pauladas. Foi discussão feia entre ele e o proprietário que chamou Chico Bento de ladrão e gritou cabra sem-vergonha, aí eu fiquei em dúvida se o proprietário estava chamando a cabra morta de sem-vergonha ou se Chico Bento era o cabra sem-vergonha por querer comer a cabra. 

Chico, nessa hora, ficou tão sem jeito que até o sobrenome "Bento" desapareceu, restando somente um homem acabrunhado com a faca na mão. Ele, em pura humildade implorativa, recebeu o intestino do animal. Comer pedra é que não podia, pensou ele. Nada eu pude fazer, a não ser deixá-lo em transe lambendo os dedos sujos de sangue enquanto tentava assar as tripas.   

Acho que a cabrinha berrou na hora errada. Coitada! Ela jamais deveria ter se mostrado apetitosa em frente a uma família esfomeada. Esse fato deu origem à outra ação impetrada por Paulo promotor que saiu em defesa do direito de berregar sem correr risco de vida. Era só isso que Paulo fazia na vida: correr atrás de ações sem futuro, enquanto seu pai ficava, por ele, abandonado. Paulo, que era o orgulho da família, passou a ser outro tipo de cabra: o famoso cabra ruim.   

Quando eu ia me esgueirando de Chico Bento, chegou sua mulher com Josias nos braços. O filho do casal estava morto, pois não é que Josias inventou de, num descuido dos pais, comer “mandioca brava crua!” Não deu outra: envenenou-se. Não sei ao certo, mas ouvi dizer que ele entrou no céu montado na cabra. 

Cordulina, em certo momento, pediu para que eu gratificasse a rezadeira que tentou salvar Josias, só que não, e argumentei que eles era quem deveriam ser indenizados pela negra velha. Se ela não conseguiu tirar o veneno da mandioca, imagine de uma cascavel. A rezadeira saiu furiosa.

Como diz o ditado: além do coice a queda. Pois, foi o que aconteceu com o casal azarado: além de perder Josias, perderam, também, o filho mais velho de doze anos que desapareceu durante outro descuido. Nunca vi um casal praticar tanto descuido! Acho que foi por isso que, mesmo “passando fome”, tiveram cinco filhos.

Quanto ao desaparecido, avistaram ele indo embora junto com outros esfarrapados. Assim, a dúvida de ele ter sido vítima de canibalismo, no campo de concentração, foi logo esclarecida.  


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 19.06.2022 — 06:59



2 comentários:

  1. Parabéns pela intertextualidade e criatividade aguçadas. Vc é um cabra bom também nos jogos de palavras. - Gilberto Cardoso dos Santos

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  2. Obrigado, Gilberto. A prática constante vai me dando mais liberdade em brincar com as palavras. Acho que esse é o grande segredo: praticar diariamente. Fico agradecido por estarmos juntos nessa luta em cavar nosso estilo na montanha das letras.

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