terça-feira, 21 de junho de 2022

VIVER NA CAVERNA - Heraldo Lins

 


VIVER NA CAVERNA


Ela se deixou levar pelas amizades. Uma verdadeira rede de “conversadeiras” foi lhe entretendo até que, ao ficar sozinha, percebeu que sua vontade de ser escritora murchava a cada dia. Queria ficar produzindo, mas estacionava na vontade das amizades agradáveis. Por um lado isso era bom porque mantinha-se lembrada, e ruim por não estar produzindo como gostaria.

Precisava apenas de tempo e sossego para que as ferramentas criativas do cérebro direcionassem a produção. Diariamente, essas ferramentas se atualizavam através das viagens surreais. Bastava ficar quietinha que seu mundo enraizava-se pelo corpo curando-a de qualquer dúvida quanto ao ser ou não ser.

Vibrava com a capacidade de ler e escrever, pois, assim, ela conversava com seus fantasmas, suas ideias, ódios e vaidades. Nada lhe dava mais prazer do que registrar suas emoções para destravar os pensamentos. Pensou até em praticar crime para ser jogada numa ilha deserta sem pessoas interferindo no seu fluxo de pensamento, mas isso ela já fazia diariamente. Havia matado homens e mulheres, meninos e animais. Cada dia decapitava seus personagens sem a menor cerimônia, e isso a fazia prisioneira desse poder. Quando chegava o pedido para construção de um novo mundo, até o sono era bloqueado, contudo, o medo de estar sendo insignificante a perseguia.  

Quando ficava em frente à página em branco, saudades surgiam expulsando-a para longe da escrita criativa. Sentia-se atraída pelo glamour da noite, das festas e cerimônias. O tempo reservado para construir mundos era substituído pelos aplausos em exagero por quem se beneficiava. Às vezes era o marido, filhos, noras, todos a envolvendo na rede da desatenção. Havia um vazio em seu eu por não conseguir exercitar sua extensão vocacional com mais frequência. Estava se deixando levar pelos sorrisos amigáveis, todavia, percebeu que não adiantava mentir para si. Algum dia isso iria estourar em forma de câncer ou o que quer que fosse. 

Queria tomar seu remédio diário de escrever divagando na escuridão do cérebro, tendo como prazer maior observar uma ideia sair “doida” para ser posta na vitrine. Sentia-se por inteira quando fazia isso, porém, ao chegar para produzir escutava o choro do neto lhe atrapalhando; o filho saindo no caminhão e o marido, com dor de cabeça, pedindo-lhe chá. Amanhã a senhora vai comprar uma TV! Saiba que minha esposa não vive sem novela, dizia o filho caçula que ela ajudou a torná-lo dependente. 

Para ela, nada existia além das palavras. Se o mundo não fosse explicado, não teria razão de ser e estar. Gostava de lapidá-lo voltando sua atenção para um outro lado pouco notado pelos desatentos. Às vezes, usava seus descendentes e companheiro como isca de texto. Naquele mundo, que só ela conhecia tão bem, as rusgas do casamento eram enterrados junto a personagens executados. Escrevia por simples prazer em ver as letras sendo arrumadas na folha. Sorria, também, quando as palavras eram-lhe simpáticas e encaixadas sem necessária revisão. Cada vírgula era como uma barreira que a deixava pensativa. O que virá após o ponto...?


 Que bom, pensava ela, sentir um novo mundo sendo construído. Um mundo que antes não existia, e que ao ser lido, tomava corpo em outras mentes. Muitas pessoas adoravam conversar com ela de longe, outras, iam até sua casa para jogarem conversa fora. Ela tentava ser ótima anfitriã, todavia, com muito fingimento e pouco prazer mantinha-se desatenta à realidade, pensando que quando estivesse sozinha poderia ser feliz. Que droga! Daqui a pouco terei que visitar fulana no hospital e sicrana que vai viajar para o exterior. Tudo toma tempo, e o meu está sendo fatiado e distribuído para outras pessoas, dizia ela. Não vou mais conceder entrevistas, pensava, mas voltava atrás por não suportar ser apenas um retrato na parede dos sites de pesquisa.  

Certa vez, fugiu para longe das amizades. Forjou uma viagem sem roteiro, na verdade, nem saiu de casa. Quando retornou da fictícia ausência, convidou todos para o lançamento do seu novo livro. A maioria das amigas ficaram ofendidas por ela ter “estornado” sua companhia, e, por isso, nem foram para a cerimônia. Seu dilema é esse: ficar em casa sem um pingo de social, ou soltar beijinhos...? Quando fica enclausurada, os filhos lhe acusam de abandoná-los. Se soubesse nem tinha sido mãe. Será que é doida...? Uma mãe que prefere escrever a ficar com os filhos, só pode ser! Mas, conformando-se, diz para si: sou, simplesmente, poetisa!     


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 20.06.2022 — 20:33



2 comentários:

  1. Muito boa, Heraldo. Que drama o dessa mulher! Parabéns! - Gilberto Cardoso dos Santos

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  2. Obrigado, Gilberto. Inspirei-me nas angústias de Clarice Lispector.

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