sábado, 11 de junho de 2022

O ROÇADO AGORA É A RUA - Heraldo Lins

 


O ROÇADO AGORA É A RUA


Há dois meses que emprestei dez dinheiros para Gestiono. Pediu-me cinquenta, porém, ficou satisfeitíssimo com essa contraproposta. Sempre que precisa rechear a carteira, mantêm-se por perto inventando novidades para atrair a atenção. Algumas vezes são os “noiados” que estavam na maconha ali perto; outra, foi o carro da polícia fechando o dos bandidos; na rua, perto de seu Gasparilo, um adolescente furtou um dindin.  Nunca se viu tanto crime sem testemunhas. O importante é acreditar e pronto. 

Esse vigia do bairro passa o dia fumando de porta em porta adquirindo um pouco de um aqui, um pouco de outro acolá, sem muita real serventia. Olha a casa de alguém, as empresas de outros, informa sobre os serviços e produtos na região, e assim, com a logomarca em sua camisa, atrai para si pessoas carentes de informações. 

As suas conversas têm como tema central os bens materiais que lhe faltam em casa: uma caixa de fósforo, uma vela... Ainda bem que sua aposentadoria possui um pequeno fôlego para manter uma mulher com vários filhos agregados.  

A irmã juíza não é muito bem vista por Gestiono. Diz ele que trabalhava no roçado para que ela pudesse estudar, e hoje, ela não o reconhece como irmão. Quem conhece os dois fala o contrário. Diz que Gestiono é ingrato e que a irmã quer ajudá-lo, mas ele quer sempre muito mais dinheiro para poder distribuir com os enteados e “ficar bem na fita”. Quando seu pai ainda era vivo, dizia para a filha: quando eu morrer, não se esqueça de cuidar de Gestiono! Não sei se é sentimento ou teatro, só sei que, ao relembrar, as águas dos olhos deixam caminhos tortuosos naquela face sofrida.      

O vestuário dele conta com apenas camisas pretas marcadas com letras brancas indicando a profissão de SEGURANÇA que abraçou depois que caiu do caminhão e ficou, praticamente, inutilizado. Desde então, tem convulsões, e por isso abandonou a estrada para tomar remédios. Com café, mistura-os logo cedo com os pães doados por dona Gerletina. Assim que ela abre o quiosque, ele chega-se por lá, pois quase não consegue dormir com o corte latejante na cabeça rachada à época da queda. 

O uniforme serve para ininterruptas arrecadações. É o seu trunfo ficar na porta da clínica dando informações sem poder adentrar ao recinto. Suas roupas, sem as lavagens exigidas, é o “passaporte” para que fique lá fora. Seu odor de cigarro permanente, também não é indicado para o ambiente. Mesmo assim, o dono do estabelecimento permaneceu dando-lhe uma ajuda de custo quando ele ficou hospitalizado. Teve uma piora no seu quadro neuro... não sei o que. Ele explicou, mas sua voz gutural expressa pela língua pesada batendo na gengiva desprotegida me deixou sem muito entendimento do que ele disse.  

A única vez que o vi bravo foi quando um dos logistas, que mantinha um banco de jardim em frente do seu estabelecimento, colocou um cartaz com os dizeres: silêncio! vigia trabalhando. Naquele momento, Gestiono estava sentado tirando uma soneca. A foto, com o cartaz em seu colo enquanto roncava, foi feita e espalhada entre os outros comerciantes. Toda vez que Gestiono chegava querendo adquirir um trocado, saia com raiva de quem mostrava-lhe a famosa foto. 

Conseguir passar por ele sem ter um bate-papo forçado é quase impossível. Ele fala arrastado induzindo a pessoa a ouvi-lo, mais por dó de que com interesse em saber o assunto. Gestiono, ao conversar, usa uma técnica impressionante de esconder o cigarro: aperta-o entre o indicador e o polegar; encolhe os dedos de modo que nunca se percebe que está com um cigarro em brasas a poucos milímetros da palma da mão. O motivo dessa artimanha é para que o “negador” da ajuda não use o vício de fumante contra ele para escapulir do auxílio. 

 Só ontem foi que percebi essa técnica. Depois que saí do carro, lá vinha ele me olhando com sua cara e olhos inchados. Cumprimentou-me e foi logo dizendo que havia guardado o dinheiro para me pagar, e como eu não apareci, a necessidade o obrigou a usá-lo. Tive que lhe emprestar mais dez.  


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 11.06.2022 — 09:37



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