quarta-feira, 29 de junho de 2022

A PELEJA É GRANDE - Heraldo Lins

 


A PELEJA É GRANDE 


Hum? Pergunta o homem, de madrugada. Hum, hum, responde a mulher. Ele também tenta dormir, só que ela já está roncando, há muito tempo, com a boca aberta virada para o seu rosto. O travesseiro, em pé, serve de barreira para evitar o bafo quente vindo em sua direção. 

Está cedo para se levantar e tarde demais para tomar banho, pensa ele. Era para ter tomado antes de se deitar, disse para si ao se conscientizar que perdeu o sono. 

Nada resta a fazer, a não ser relembrar a conversa de ontem que sua esposa teve com a empregada: como é o nome do homem que dedetizou a casa? Perguntou a empregada. Có có! Foi assim que se deu o bate-papo. Cóóó... cóóó? Não, não é cóóó... cóóó, é simplesmente có có! A empregada riu e insistiu: como é que uma pessoa tem um nome assim? Há mais dois na cidade, a mulher respondeu saindo para o trabalho querendo dar um basta na conversa utilizada, pela empregada, como artimanha para não varrer o quintal.

Para ele não tem lógica ficar pensando nesse diálogo domiciliar, porém, aceita divagar sem traumas por esse caminho. O objetivo é acalmar a mente que teima em ficar acesa de madrugada, em vão, pensa escutando o ronco da mulher. 

Do lado de cá da cama é como se ele estivesse na Ucrânia e o Ronco viesse da Rússia. Apenas existe a barricada de um travesseiro em pé marcando a fronteira igual um escudo invisível. Sente-se protegido do bafo, entretanto, o barulho lhe tira a paciência. 

Um quarto de hora se passa no quarto do casal sem que nada altere aquela situação. Mais um quarto entra nessa história. É o dele que fica dormente por permanecer tanto tempo em uma só posição. 

Entra em cena a coitada da galinha que deu origem ao apelido có có. Tem dúvidas quanto a isso, mas por falta de sono, até um cacarejar serve para se entreter. Se alguém souber que ele está analisando o apelido có có como sendo de origem galinácea, sua reputação vai por água abaixo. O que fizeram com a galinha para receberem esse apelido malicioso, ele não sabe e nem quer saber, mas fica indagando naquela madrugada fria sem assunto. 

O problema não é ser fria, e sim, não ter algo importante para pensar, dando a entender que ele carrega a falta de importância no quesito pensador. Não faltará gente para dizer: um homem de pensamentos profundos perder tempo com um assunto tão banal assim, deve estar ficando maluco, dirão sim, se souberem, mas ele não é tolo para contar! 

Percebe que do lado da Rússia houve uma trégua no barulho. Não! não houve, foi engano! Apenas o tanque mudou de posição e deu uma pequena pausa. Essa incerteza é que mata! 

Ele fica com vontade de ir ao banheiro, mas tem medo das consequências. Só lhe é permitido quando ela se levanta na mesma hora, foi o combinado. 

Dois quartos de hora se passam e ele volta do quarto da empregada. Esse negócio de quarto já está enchendo o saco, contudo, nessa situação qualquer saco é permitido se encher desde que sirva para continuar jogando pensamento fora. 

A empregada estava roncando e, mesmo sendo balançada, não acordou com o carinho. Vá ter sono pesado na sala! Parece que armaram um complô roncador contra ele! Nunca pensou que houvesse tanto assim em sua casa. 

Ele boceja e se anima achando que irá dormir. A alegria espantou o sono. Pronto, agora lascou! Com as pernas dobradas, olha para o teto e sente falta das motos barulhentas, dos miados, latidos, nada surge quando mais precisa. Olha às três da manhã no relógio. Coça a orelha e percebe a importância da coceira, a única amiga que ficou nesse momento de total abandono. Ainda bem que coceira existe. 

Lembrou-se de um amigo que tinha uma delas de forma acentuada na virilha. Em uma das suas viagens, o amigo parou o carro e pegou duas pedras quentes para tentar resolver o incômodo. Poucos dias depois, o insone lhe presenteou com um ralo, atando ainda mais a amizade entre os dois. 

Não quer se aborrecer com o barulho ao lado, mas que aumentou, ah! isso sim, aumentou, e muito. Um barulho diferente do ronco é escutado vindo da Rússia. Só há dois caminhos: ou adormece ou endoidece. É... parece que ele não adormeceu.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 29.06.3022 - 03:03




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