terça-feira, 8 de março de 2022

ESPAÇOS FORA DO LUGAR - Heraldo Lins

 



ESPAÇOS FORA DO LUGAR


Logo cedo saiu para a feira. Faz isso há anos e esse seria mais um dia normal na sua rotina. Ao abrir a porta deu de cara com uma floresta. No lugar de veículos transitando, estavam árvores, córregos, pássaros. Estranhamente pensou que estava sonhando. Fechou a porta, beliscou-se, mas estava mesmo vendo o que estava. Percebeu ao lado da porta um painel com várias indicações eletrônicas. O botão que estava aceso era realmente de uma floresta. Apertou um outro. Abriu a porta e estava à beira mar. Não sabia quem teria colocado aquilo na sua casa, mas o fato que estava fazendo-a ter acesso às mais diversas paisagens. Ao apertar o botão amarelo, foi parar na lua. Olhou para os lados e viu alguém varrendo. Perguntou onde estava e soube tratar-se de um estúdio onde, todos os meses, projetava-se a imagem do que conhecemos como satélite natural da terra. Naquele dia a projeção seria do desenho circular totalmente preenchido. A lua cheia estava prevista para aquela noite e seria frustrante, para os lobos e os boêmios que gostam de fazer luau, se ela não surgisse. 

Voltou e apertou o botão da chuva. Lá estavam os pingos descendo incessantemente e ao lado uma pessoa mudando as imagens onde deveria ser molhado. Percebeu que a pessoa que direcionava os locais estava recebendo propina para fazer chover onde não precisava: no mar, nas florestas. Nos desertos as imagens quase não apareciam.

Deixou tudo e voltou para sua casa. Lá também havia sido modificada. Seus móveis agora falavam como gente. O fogão disse para ela que estava farta de fazer fogo. Queria ser promovida para produzir gelo. Sentia uma grande vontade de fazer picolés e sorvetes, só ainda não tinha feito porque era discriminada na casa. Suas vontades nunca foram colocadas em prática. Decidiu ser assim porque era uma imposição da sua fábrica, mas que nunca estivera satisfeita. 

A geladeira, pela lógica, seria a cozinheira, só que ela preferiu servir de féretro. Gostaria de ter alguém morta dentro dela. Sua capacidade de conservar seria muito útil para a família não perder a aposentadoria do seu morto. Ela guardaria em seu interior, e quando se fizesse a prova de vida, o defunto estaria dormindo e conservado. Bastava ser amigo do gerente do banco que tudo continuaria no mesmo padrão econômico. 

As camas não quiseram mudar sua função. Disseram que era ali que se divertiam com os gemidos. Os momentos melhores da casa aconteciam ali, e não queriam deixar essa fartura de emoções, foi quando a cama do quarto do vovô falou que discordava. Não aguentava ser molhada e fedida constantemente. Seus momentos de lazer foram, literalmente, por água abaixo depois que o chefe da família teve AVC. Seus sofrimentos cada dia aumentavam mais. Esperava ser trocada por uma poltrona. 

A nossa personagem, exausta, sentou-se na mesa para avaliar sua nova realidade. As xícaras vieram correndo ter com ela. Reuniram-se e pediram para ela deixar de tomar café. Aquele negro, disseram elas, vive se espalhando na gente e se acha. Tudo é motivo para se envaidecer. Diz que as visitas vêm por causa dele. Nós que pegamos no pesado, recebendo quentura, boca fedorenta, e aqui e acolá somos desprezadas no chão e nunca fomos valorizadas. Ninguém diz: vamos usar nossas xícaras. Somos como invisíveis dentro dessa casa. 

Quando a mulher achava que havia visto de tudo, chegou a privada. Quero mudar de lugar, disse acompanhada do papel higiênico. Queremos ser os móveis da sala. Seremos os substitutos das cadeiras e meu amigo e parceiro papel higiênico será promovido a guardanapo. Aí foi demais. Já pensou uma reunião de negócios todo mundo sentado em privadas. Destruiu o painel e foi fazer a feira sem o mundo virtual. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 07.03.2022 – 07:41



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários com termos vulgares e palavrões, ofensas, serão excluídos. Não se preocupem com erros de português. Patativa do Assaré disse: "É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”