Onde estava o padre de Jardim de Piranhas em 9 de fevereiro de 2022?
Era uma data
especialíssima que entraria para a história do município – a mais importante do calendário de
2022; data em que o chefe maior do país veio à cidade para inaugurar a
chegada das bem-vindas águas do São Francisco. A água, todavia, não chegou a
tempo, nem o padre compareceu ao evento. Água, aliás, parece que foi o que
menos teve. Em seu discurso, o prefeito disse que estava segurando as lágrimas;
não faltou saliva, é verdade, nos discursos, nem perdigotos atingindo rostos excessivamente
próximos. Faltava um padre para aspergir o líquido bento nas autoridades
e na multidão tão carente de bênçãos.
Estaria
doente? Estaria oficiando noutro lugar? O que haveria de mais importante para
ele naquele dia? Ali estavam ministros, prefeitos e o presidente da república.
Não dá pra imaginar uma cerimônia daquele porte sem a presença de um padre.
Pastores se fizeram presentes. Teria sido ele também convidado?
Qual álibi
apresentaria?
Resolvi
pesquisar a respeito do faltoso. Chama-se Rômulo Azevedo e é jardinense de
nascimento. Descobri que é poeta e tem livro publicado. Li algumas de suas
mensagens escritas, assisti a uma de suas entrevistas na qual aparecia com
máscara e ouvi alguns sermões seus. Pareceu-me bastante sensato em sua prédica
e advertências acerca da pandemia. Ouvi-o dando alertas contra a fé presunçosa
que dispensa cuidados, contra o conservadorismo fanático e a favor do
isolamento. Vi-o encerrar uma de suas homilias recitando um poema de Dom
Helder Câmara. Sua palavra pareceu-me cativante, com pitadas de poesia e ao mesmo
tempo não alienante. Fazia eco ao que tem dito o papa Francisco e ao Sermão da
Montanha. Deu-me vontade de interagir com ele, de ouvir de perto algum de seus
sermões e de ler o seu livro. Alguém testemunhou a seu respeito: "[Padre
Rômulo é] contrário a qualquer tipo de
badalação que não seja voltada para pregação da palavra
sagrada." Como exemplo de sua postura diferenciada, quando completou
15 anos de sacerdócio, fez algo inusitado. Poderia ter articulado com seus
paroquianos para fazer uma festa grandiosa e convidar a elite local, mas não o
fez. Passou o dia recolhido, em meditação e silêncio. Suas
mensagens me parecem de utilidade nesses tempos difíceis.
Onde
estaria, pois, naquele dia, o principal representante da espiritualidade
piranhense?
Tenho certeza
que a eventos de menor magnitude ele não se negue a ir e jamais rejeite
oportunidade de espalhar bálsamos verbais. Se comparece a eventos inferiores
para benzer garrafas d'água, por que não foi abençoar as tão necessárias e
almejadas águas do Rio São Francisco?
Felizmente,
para alívio dos políticos, um padre atuante na região do Trairi se fez presente.
Aproximaram-no (ou aproximou-se) do presidente. Deu-se ênfase a sua
estada. Além disso - informou um dos figurões presentes -, tratava-se do
padre da Terra da Santa. Sabedor disso, Bolsonaro alegrou-se e sugeriu que o integrassem à
comitiva presidencial.
À semelhança do que era chamado de Mito e da maioria dos presentes, estava sem máscara. Alguma lente captou o momento em que ele, olhos nos olhos, mirou o dirigente da nação. Estavam excessivamente próximos e esbanjando sorrisos. Havia brilho no olhar e nos dentes. Pensei ao ver a foto: invista na amizade ou no amor de alguém que olhe para você como o padre olhou para o presidente. Cristãos que são, ambos estavam "com o rosto descoberto", como manda 2 Cor. 3:18. Significativa foi a eclesial presença em Jardim de Piranhas naquele momento. Preencheria, em parte, o vazio deixado pelo padre Rômulo. Estava ali para satisfação de boa parte de seus paroquianos e dos políticos presentes. Amado por quase todos, fonte de decepção para alguns, causaria tristeza aos católicos progressistas. Mais por tristeza que por ódio, é claro, por saber da grande influência exercida por ele, por temer que afete negativamente os resultados eleitorais de 2022, alguns católicos lamentariam no Facebook. Figura pública que é, tem que tolerar as críticas e o faz com aparente maturidade, sem perder o bom humor. No entanto, temos que dar, mesmo que a contragosto, lugar à democracia, conforme reivindicado pelo próprio clérigo nas redes sociais.
Mas onde
estaria o padre de Jardim de Piranhas naquela tarde? Fez muita falta, decerto.
Vários
presentes foram dados ao presidente. Entre eles e entregue por último por ser o
mais significativo, uma imagem de Nossa Senhora dos Aflitos, padroeira do
município. Quem deveria entregá-la? Obviamente, o padre local! Não cairia bem
improvisar com o pároco de Santa Cruz, representante doutra santa e havendo
chegado de forma inesperada, fazer isso. Na pressentida ausência do
sacerdote, a entrega foi programada para ser feita pelo prefeito, e acabou
sendo feita pela primeira-dama.
Onde, pois,
estaria o padre Rômulo durante aquela cerimônia? Por que não teria sido
convidado? Se o convite lhe foi feito, por que haveria recusado? Teria algo a
ver com não querer ser uma espécie de boi de Jardim de Piranhas?
A julgar por
suas postagens, é um padre progressista. Convidado ou não, jamais iria.
Dispensara a oportunidade de brilhar ao lado das mais altas autoridades estaduais e nacionais. Mesmo com potenciais prejuízos pessoais, não faria coro à
onda negacionista responsável por tantas mortes, deve ter pensado. Não daria uma de Pilatos,
mesmo com águas do São Francisco. Preferiu, talvez, ficar na solidão de seu
quarto, orando pelas autoridades, como ordenam as Escrituras, lendo algum salmo
imprecatório ou escrevendo mais um de seus poemas.
Espero que o
relato de sua significativa ausência marque presença nos compêndios de história
do município.
Não descobri
precisamente onde esteve o padre de Jardim de Piranhas, tampouco o que fez naquele
memorável dia. Só sei que ele estava em qualquer lugar, menos onde não deveria
estar.
Gilberto
Cardoso dos Santos
O padre Rômulo não estava onde não deveria estar, parabéns!Fato esse, muito significativo. Diz muito dele, Rômulo, e dos que ali estavam.
ResponderExcluirO padre de Jardim de Piranhas deve ter boas noites de sono, imagino. Pelo menos não lhe pesa a consciência.
ResponderExcluirExcelente reflexão!!
ResponderExcluirAh, Gilberto... Com um texto desses, muita gente agora vai querer conhecer o padre Rômulo!! Inclusive eu!! Aguçou minha curiosidade. Nem conheço mas já gosto!! KKK
ResponderExcluirParabéns, Gilberto!! Excelente!!
Excelente reflexão, com riqueza de humor, ironia e maestria no uso das palavras!
ResponderExcluirGilberto, como sempre escreves divinamente bem. Gostei do Padre Romulo. Como bem colocou Goretti Borges acima a atitude dele diz muito sobre ele.
ResponderExcluirJoseni Santos.
Virei fã de Padre Rômulo. Sua já sou há tempos!
ResponderExcluirGostei muito do texto e louvei a ausência verdadeiramente cristã do Padre Rômulo. Parabéns ao padre e ao escritor.
ResponderExcluirO padre concerteza não estar arrependido nem mesmo preocupado o porquê não ter frequentado. Sinceramente deve estar de alma lavada e na solidão dos seus pensamentos tentava tirar os pecados dos males feitos da humanidade. Ou quem sabe desumanidade...
ResponderExcluirJá quero conhecer Padre Rômulo! Parabéns Padre!
ResponderExcluirPadre Rômulo, me representa!
ResponderExcluirQue padre arretado!
ResponderExcluirQue texto porreta!
Parabéns.
Há muito que os padres, e antes em menor escala os pastores protestantes, são presenças em obras de inaugurações públicas e privadas.
ResponderExcluirAriano Suassuna, no seu famoso Auto da Compadecida, traz a marcante e hilária cena da benzedura do cachorro com alusão ao benzimento de um carro.
Irracional e sacrilégio parecia ímplicito ser o argumento do padre para não benzer o cachorro da mulher do padeiro.
Até argumentou que "benzer motor é fácil, todo mundo faz isso".
Estaria o Padre Rômulo achando absolutamente irracional e sacrilégio benzer aquele momento "inaugural" com todo o seu carregado (no bom nordestinês) contéudo?
Sua benção, Padre Rômulo, o Brasil precisa dela!
Boa, Roberto!
ExcluirBelíssimo texto Gilberto. Parabéns! Um texto a nível do jornal Folha de São Paulo, de tão bem escrito.
ResponderExcluirVerdade!
ExcluirEsse texto está um pecado d bom! Parabéns, Gilberto!
ResponderExcluirSalve, salve Padre Romulo. Eu também não seria participes dessa farsa. Nós sabemos quando e como começou essa pendenga. Os altos investimentos. Subornos. Propinas e arrumadinhos nos governos que se apossaram da obra. Para comprovar a mentira não jorrou nas torneiras a água do São Francisco. Creio até que se ele (São Francisco) pudesse só iria correr e verter nos lares dos que necessitam e não podem pagar pela mesma. Estou com o Padre Romulo e com a maioria do povo brasileiro. Fora Bolsonaro! - Junio Santos
ResponderExcluirFazer a leitura desse texto me fez passear num universo literário de um porte gigantesco... Parabéns Gilberto Cardoso Dos Santos , a forma como brinca com as palavras é realmente um encanto, é prazeroso ler. Aliás, ler Gilberto Cardoso dos Santos, é, sem dúvida, algo rico. - Auxiliadora Ferreira
ResponderExcluirLendo e relendo, estou entre os não inquisidores, entre os cristãos contemplativos que amargam a cena inusitada e posta em má hora. Seu texto dialoga com o de Nailson Costa, ambos, provocativos, esclarecedores. Com muita lucidez, vcs não ferem a imagem de ninguém, trazem alento em meio ao desencanto...encerro cabisbaixa e circunspecta...encarando com prudência, os estranhos dias que nos revelam 2022. - Débora Raquiel Lopes
ResponderExcluirCuidadosamente li,reli,com muita atenção cada vez que leio algo escrito por este amigo poeta fico mais orgulhosa ,Jesus te abençoe grandemente . - Lúcia Lopes
ResponderExcluirExcelente texto! Parabéns ao escritor Gilberto e ao Padre Rômulo pela ausência cristã. - Almandina Castilho
ResponderExcluirParabéns pelo belo texto Gilberto Cardoso Dos Santos e ao padre Rômulo de Jardim de Piranhas parabéns!!!!!!! - Ana Teresa Umbelino
ResponderExcluirGilberto Cardoso Dos Santos Sensato com as palavras. Tão delicado e sensato que um texto desse só fere quem tá do lado errado. Parabéns por esse talento e por estar do lado certo! - Amparo Ramona
ResponderExcluirFico com o padre Rômulo. E com o padre Dalmário Barbalho de Melo , que sofreu uma covarde tentativa de difamação pelo blog do BG, por não ter medo de dizer o que pensa. - Renan Pinheiro
ResponderExcluirÓtimo texto. Padre decidido e corajoso. - João Filho
ResponderExcluirShow esse padre Rômulo. Estava, certamente, no lugar certo. Cuidando das coisas de Deus
ResponderExcluirBelo texto! Parabéns Gilberto Cardoso Dos Santos. Com relação ao termo "Padres Progressistas" quero entender, os que avançam na busca da verdade, pois a verdade não admite progresso, ela é constante e perfeita. Conserva todos os seus valores. A mentira, ao contrário, está sempre mudando. - Márcio Cavalcanti
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