domingo, 13 de fevereiro de 2022

ONDE ESTAVA O PADRE DE JARDIM DE PIRANHAS?


Onde estava o padre de Jardim de Piranhas em 9 de fevereiro de 2022?

Era uma data especialíssima que entraria para a história do município – a mais importante do calendário de 2022; data em que o chefe maior do país veio à cidade para  inaugurar a chegada das bem-vindas águas do São Francisco. A água, todavia, não chegou a tempo, nem o padre compareceu ao evento. Água, aliás, parece que foi o que menos teve. Em seu discurso, o prefeito disse que estava segurando as lágrimas; não faltou saliva, é verdade, nos discursos, nem perdigotos atingindo rostos excessivamente próximos.  Faltava um padre para aspergir o líquido bento nas autoridades e na multidão tão carente de bênçãos.

Estaria doente? Estaria oficiando noutro lugar? O que haveria de mais importante para ele naquele dia? Ali estavam ministros, prefeitos e o presidente da república. Não dá pra imaginar uma cerimônia daquele porte sem a presença de um padre. Pastores se fizeram presentes. Teria sido ele também convidado?

Qual álibi apresentaria?

Resolvi pesquisar a respeito do faltoso. Chama-se Rômulo Azevedo e é jardinense de nascimento. Descobri que é poeta e tem livro publicado. Li algumas de suas mensagens escritas, assisti a uma de suas entrevistas na qual aparecia com máscara e ouvi alguns sermões seus. Pareceu-me bastante sensato em sua prédica e advertências acerca da pandemia. Ouvi-o dando alertas contra a fé presunçosa que dispensa cuidados, contra o conservadorismo fanático e a favor do isolamento. Vi-o encerrar uma de suas homilias recitando um  poema de Dom Helder Câmara. Sua palavra pareceu-me cativante, com pitadas de poesia e ao mesmo tempo não alienante. Fazia eco ao que tem dito o papa Francisco e ao Sermão da Montanha. Deu-me vontade de interagir com ele, de ouvir de perto algum de seus sermões e de ler o seu livro. Alguém testemunhou a seu respeito: "[Padre Rômulo é] contrário a qualquer tipo de badalação que não seja voltada para pregação da palavra sagrada." Como exemplo de sua postura diferenciada, quando completou 15 anos de sacerdócio, fez algo inusitado. Poderia ter articulado com seus paroquianos para fazer uma festa grandiosa e convidar a elite local, mas não o fez. Passou o dia recolhido, em meditação e silêncio.  Suas mensagens me parecem de utilidade nesses tempos difíceis.

Onde estaria, pois, naquele dia, o principal representante da espiritualidade piranhense?

Tenho certeza que a eventos de menor magnitude ele não se negue a ir e jamais rejeite oportunidade de espalhar bálsamos verbais. Se comparece a eventos inferiores para benzer garrafas d'água, por que não foi abençoar as tão necessárias e almejadas águas do Rio São Francisco?

Felizmente, para alívio dos políticos, um padre atuante na região do Trairi se fez presente. Aproximaram-no (ou aproximou-se) do presidente. Deu-se ênfase a sua estada. Além disso - informou um dos figurões presentes -, tratava-se do padre da Terra da Santa. Sabedor disso, Bolsonaro alegrou-se e sugeriu que o integrassem à comitiva presidencial.

À semelhança do que era chamado de Mito e da maioria dos presentes, estava sem máscara. Alguma lente captou o momento em que ele, olhos nos olhos, mirou o dirigente da nação. Estavam excessivamente próximos e esbanjando sorrisos. Havia brilho no olhar  e nos dentes. Pensei ao ver a foto: invista na amizade ou no amor de alguém que olhe para você como o padre olhou para o presidente. Cristãos que são, ambos estavam "com o rosto descoberto", como manda 2 Cor. 3:18.  Significativa foi a eclesial presença em Jardim de Piranhas naquele momento. Preencheria, em parte, o vazio deixado pelo padre Rômulo. Estava ali para satisfação de boa parte de seus paroquianos e dos políticos presentes. Amado por quase todos, fonte de decepção para alguns, causaria tristeza aos católicos progressistas. Mais por tristeza que por ódio, é claro, por saber da grande influência exercida por ele, por temer que afete negativamente os resultados eleitorais de 2022, alguns católicos lamentariam no Facebook. Figura pública que é, tem que tolerar as críticas e o faz com aparente maturidade, sem perder o bom humor. No entanto, temos que dar, mesmo que a contragosto, lugar à democracia, conforme reivindicado pelo próprio clérigo nas redes sociais.

Mas onde estaria o padre de Jardim de Piranhas naquela tarde? Fez muita falta, decerto.

Vários presentes foram dados ao presidente. Entre eles e entregue por último por ser o mais significativo, uma imagem de Nossa Senhora dos Aflitos, padroeira do município. Quem deveria entregá-la? Obviamente, o padre local! Não cairia bem improvisar com o pároco de Santa Cruz, representante doutra santa e havendo chegado de forma inesperada, fazer isso.  Na pressentida ausência do sacerdote, a entrega foi programada para ser feita pelo prefeito, e acabou sendo feita pela primeira-dama.

Onde, pois, estaria o padre Rômulo durante aquela cerimônia? Por que não teria sido convidado? Se o convite lhe foi feito, por que haveria recusado? Teria algo a ver com não querer ser uma espécie de boi de Jardim de Piranhas?

A julgar por suas postagens, é um padre progressista. Convidado ou não, jamais iria. Dispensara a oportunidade de brilhar ao lado das mais altas autoridades estaduais e nacionais. Mesmo com potenciais prejuízos pessoais, não faria coro à onda negacionista responsável por tantas mortes, deve ter pensado. Não daria uma de Pilatos, mesmo com águas do São Francisco. Preferiu, talvez, ficar na solidão de seu quarto, orando pelas autoridades, como ordenam as Escrituras, lendo algum salmo imprecatório ou escrevendo mais um de seus poemas. 

Espero que o relato de sua significativa ausência marque presença nos compêndios de história do município.

Não descobri precisamente onde esteve o padre de Jardim de Piranhas, tampouco o que fez naquele memorável dia. Só sei que ele estava em qualquer lugar, menos onde não deveria estar.

 

Gilberto Cardoso dos Santos 



 


28 comentários:

  1. O padre Rômulo não estava onde não deveria estar, parabéns!Fato esse, muito significativo. Diz muito dele, Rômulo, e dos que ali estavam.

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  2. O padre de Jardim de Piranhas deve ter boas noites de sono, imagino. Pelo menos não lhe pesa a consciência.

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  3. Ah, Gilberto... Com um texto desses, muita gente agora vai querer conhecer o padre Rômulo!! Inclusive eu!! Aguçou minha curiosidade. Nem conheço mas já gosto!! KKK
    Parabéns, Gilberto!! Excelente!!

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  4. Excelente reflexão, com riqueza de humor, ironia e maestria no uso das palavras!

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  5. Gilberto, como sempre escreves divinamente bem. Gostei do Padre Romulo. Como bem colocou Goretti Borges acima a atitude dele diz muito sobre ele.
    Joseni Santos.

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  6. Virei fã de Padre Rômulo. Sua já sou há tempos!

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  7. Gostei muito do texto e louvei a ausência verdadeiramente cristã do Padre Rômulo. Parabéns ao padre e ao escritor.

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  8. O padre concerteza não estar arrependido nem mesmo preocupado o porquê não ter frequentado. Sinceramente deve estar de alma lavada e na solidão dos seus pensamentos tentava tirar os pecados dos males feitos da humanidade. Ou quem sabe desumanidade...

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  9. Já quero conhecer Padre Rômulo! Parabéns Padre!

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  10. Que padre arretado!
    Que texto porreta!
    Parabéns.

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  11. Há muito que os padres, e antes em menor escala os pastores protestantes, são presenças em obras de inaugurações públicas e privadas.

    Ariano Suassuna, no seu famoso Auto da Compadecida, traz a marcante e hilária cena da benzedura do cachorro com alusão ao benzimento de um carro.

    Irracional e sacrilégio parecia ímplicito ser o argumento do padre para não benzer o cachorro da mulher do padeiro.

    Até argumentou que "benzer motor é fácil, todo mundo faz isso".

    Estaria o Padre Rômulo achando absolutamente irracional e sacrilégio benzer aquele momento "inaugural" com todo o seu carregado (no bom nordestinês) contéudo?

    Sua benção, Padre Rômulo, o Brasil precisa dela!

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  12. Belíssimo texto Gilberto. Parabéns! Um texto a nível do jornal Folha de São Paulo, de tão bem escrito.

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  13. Esse texto está um pecado d bom! Parabéns, Gilberto!

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  14. Salve, salve Padre Romulo. Eu também não seria participes dessa farsa. Nós sabemos quando e como começou essa pendenga. Os altos investimentos. Subornos. Propinas e arrumadinhos nos governos que se apossaram da obra. Para comprovar a mentira não jorrou nas torneiras a água do São Francisco. Creio até que se ele (São Francisco) pudesse só iria correr e verter nos lares dos que necessitam e não podem pagar pela mesma. Estou com o Padre Romulo e com a maioria do povo brasileiro. Fora Bolsonaro! - Junio Santos

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  15. Fazer a leitura desse texto me fez passear num universo literário de um porte gigantesco... Parabéns Gilberto Cardoso Dos Santos , a forma como brinca com as palavras é realmente um encanto, é prazeroso ler. Aliás, ler Gilberto Cardoso dos Santos, é, sem dúvida, algo rico. - Auxiliadora Ferreira

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  16. Lendo e relendo, estou entre os não inquisidores, entre os cristãos contemplativos que amargam a cena inusitada e posta em má hora. Seu texto dialoga com o de Nailson Costa, ambos, provocativos, esclarecedores. Com muita lucidez, vcs não ferem a imagem de ninguém, trazem alento em meio ao desencanto...encerro cabisbaixa e circunspecta...encarando com prudência, os estranhos dias que nos revelam 2022. - Débora Raquiel Lopes

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  17. Cuidadosamente li,reli,com muita atenção cada vez que leio algo escrito por este amigo poeta fico mais orgulhosa ,Jesus te abençoe grandemente . - Lúcia Lopes

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  18. Excelente texto! Parabéns ao escritor Gilberto e ao Padre Rômulo pela ausência cristã. - Almandina Castilho

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  19. Parabéns pelo belo texto Gilberto Cardoso Dos Santos e ao padre Rômulo de Jardim de Piranhas parabéns!!!!!!! - Ana Teresa Umbelino

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  20. Gilberto Cardoso Dos Santos Sensato com as palavras. Tão delicado e sensato que um texto desse só fere quem tá do lado errado. Parabéns por esse talento e por estar do lado certo! - Amparo Ramona

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  21. Fico com o padre Rômulo. E com o padre Dalmário Barbalho de Melo , que sofreu uma covarde tentativa de difamação pelo blog do BG, por não ter medo de dizer o que pensa. - Renan Pinheiro

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  22. Ótimo texto. Padre decidido e corajoso. - João Filho

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  23. Show esse padre Rômulo. Estava, certamente, no lugar certo. Cuidando das coisas de Deus

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  24. Belo texto! Parabéns Gilberto Cardoso Dos Santos. Com relação ao termo "Padres Progressistas" quero entender, os que avançam na busca da verdade, pois a verdade não admite progresso, ela é constante e perfeita. Conserva todos os seus valores. A mentira, ao contrário, está sempre mudando. - Márcio Cavalcanti

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