RECORTES
Vai cantando enquanto sobe no coqueiro. Lembra-se do tempo em que precisava subir na corda. Lá em cima visita os marimbondos com fogo. Rosto e braços protegidos o faz corajoso. Chegam-lhe as lembranças do corpo bonito que admirou ontem na sorveteria. Saca seu facão e derruba um cacho de cocos. A jovem de blusa rosa lhe vem novamente à mente. Mais um cacho desce em queda livre. Gosta de entregar sua produção naquela sorveteria. Sempre há alguém digna dos seus desejos para se ver. A jovem sentiu que ele a admirava.
Na rotina do perigo acostumou-se em relevar aquela altura de vinte metros. A tradição de subir em coqueiros herdou do pai. Como gostaria de amar aquela mulher. Pergunta-se o que seria necessário para que ela se sentisse atraída por ele, enquanto desce do seu trabalho. Arruma a produção em cima da carroça de burro. Se ela chegasse a ele e perguntasse o que fazia da vida, sua resposta seria: tentar encontrar o verdadeiro amor, e, nesse ínterim, vendo cocos.
Tange o burro em direção à cidade. Encontra Zé se lastimando que João quase atira nele ontem. Só não o matou porque correu. O burro come o capim da beira da estrada. Se ele fosse casado com a mulher dos seus sonhos, também mataria quem dissesse gracejos para ela. Zé ainda está de ressaca do churrasco que participou. Pede-lhe um coco. A filha do Zé passa com uma trouxa de roupa na cabeça. Tão novinha e tão maltratada. Ele poderia casar-se com ela, mas ela já foi de outro.
O menino catarrento vem atrás com uma lata na mão. Vai ajudá-la a bater roupa. A menina branquinha de ontem substitui, novamente, a realidade do agora. Zé nem o agradeceu pelo coco. Ao longe vira-se e diz que vai matar João. Sua filha, órfã de mãe, manda-lhe calar a boca. Já basta a miséria.
O burro para na cacimba. Bebe água. E se ela estiver na sorveteria? Como será sua roupinha curta de hoje? Dona Ladainha pergunta-lhe se já se casou. Ainda não comadre, preciso achar a mulher certa. É melhor sozinho do que mal acompanhado. Dona Ladainha oferecer-lhe uma das filhas casamenteiras. Só se for Judite, ela tem emprego, é estudada. Não, ela não pode. Está noiva de um homem de paletó. O burro sopra as narinas e tenta caminhar. Ôooooo ....burro! Ela sabe que ainda gosto dela? Sabe, mas disse que você é um homem grosseiro. Prefere "O Cabeça Branca"!
Dona Ladainha sabe que foi ele quem a deflorou. Judite nunca ficou quieta. Aos treze anos já pulava a janela atrás de saciar-se. Não tinha jeito.
Será se aquela da sorveteria é virgem? É mais bonita de que Judite e mais nova. Será se dona Ladainha a conhece? O burro zurra. A jumenta do João vem com uma carga d'água. Ela não está no cio, mas o burro e o dono são loucos pelo sexo oposto. Quase mato Zé ontem, soubestes? Ele contou tudinho. Disse que vai vender uma novilha para reparar os danos que causou a você. Não quero nada daquele safado, a não ser distância.
Dona Ladainha não suporta nem Zé nem João. Não esperou pelas novidades. Quem sabe se comprar um paletó Judite volte. Ficou triste em saber que Judite vai se casar. O burro está animado. A jumenta indiferente. Sempre foi assim. Parece ele e Judite.
Homem tenha calma! Tanto você quanto ele estavam bêbados. É..., mas com mulher de homem não se brinca. Essa briga entre estes dois primos cachaceiros é costumeira. A mulher do João até beata é. Dizem que tem um caso com o sacristão, mas o padre tem ciúmes..., dele.
Desapeia da carroça. A sorveteria deserta lhe entristece. Ontem foi dia de festa. Deve estar dormindo a mulher dos seus sonhos. Enquanto ela não vem, poderia ficar amancebado com a filha do Zé. O burro zurra novamente. Ô lugar para ter jumenta! Dona Ladainha lhe quer genro. Os muitos hectares de coqueiral o fazem ser o melhor partido da região. Sua musa, finalmente, entra na sorveteria. Oferece-lhe um sorriso maroto, ele, o cargo de gerente da fazenda. Arruma tudo para ficar perto de Judite. Casa-se com sua irmã novinha, tira coco com a filha do Zé, e com a musa da blusa rosa, ele passeia pelos cantos do escritório.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 20.01.2022 ─ 08:34
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