domingo, 19 de dezembro de 2021

COINCIDÊNCIAS DA NATUREZA - Heraldo Lins



COINCIDÊNCIAS DA NATUREZA


Coloca as malas no chão e senta-se em cima delas. Fica calculando como será sua vida daqui a dez anos. Tem a impressão de que a situação econômica permanecerá um problema tanto quanto agora. Olha para o relógio que continua a lhe apressar a vida. 

Procura roubar o tempo, mas percebe que a fome é quem está lhe roubando as forças. Não quer esperar que o destino dê as cartas. Testemunha mais um trem partindo, e fica sem ter sonho para guardar. Gostaria de alguém para escutar suas histórias, entretanto, está na Suíça, em pleno inverno, poucas pessoas na rua e ele sem ter para onde ir. Apenas vivencia tudo aquilo e nem sabe por que foi parar lá. Seu medo recai em não saber tomar uma decisão apropriada. Só pode contar com a faxineira para entabular uma conversa.   

−Qual é o seu nome?

−Aqui não tenho nome, sou conhecida por "a faxineira", − e continua a varrer.

Outro trem apita aproximando-se na curva. Ela retorna a conversa falando da sua criancinha-fantasma, fazendo-o se lembrar dos fantasmas que deixou no campo de batalha. Rostos sem traços, corpos metralhados... É despertado  pela voz da faxineira:

− Acho que te conheço.

− Não, aqui não sou conhecido. 

Ela olhou para a claridade chegando naquele amanhecer gelado. Estava indo embora, e ele não. O vazio de esperança o deixara estático. Um convite veria a calhar. Ele sabia que se ela fosse embora nunca mais se encontrariam:

− Posso ir com você?

Chegaram ao quartinho cheio de silêncio. As suas malas em outras mãos foram abertas e arrumadas entre roupas femininas. Durante o silêncio ninguém se cansou. Permaneceram em silêncio por várias vezes, exaustos, adormeceram abraçados.

Durante o sono viu árvores, com frutos de luz. Na montanha não tinha onde guardar tamanha claridade. Guardou no escuro dos olhos onde outros escuros se escondiam. Ria, entretanto, em pouco, o riso transformou-se em choro. Estava preso no escuro e chorando. Havia necessidade de extravasar todo o passado de agonia. Sua vida estava renascendo e como todo nascimento, o choro o acompanhava. 

Acordou renovado com um almoço na mesa e um sorriso de boa tarde. Ela estava linda sem seu uniforme. A realidade o beijou e trouxe um perfume há muito não sentido. Seu espírito de mercenário estacionara naquele quartinho alugado. Não tinha mais de que ter medo. O inimigo estava derrotado em nome da democracia mundial. Ele condecorado com uma medalha que varria o chão. Tanto se fez entre guerras que agora apreciava a paz. Assemelhava-se  a uma prímula no primeiro dia da primavera. Almoçaram e ficaram em silêncio por mais vezes.

A gestação de Ana se deu na mais completa normalidade. Sua família estava formada e feliz. Ela continuava no metrô, e ele fazia treinamento em uma empresa de segurança. Dois anos depois sua paz só foi afetada com a comprovação do DNA que o menino era filho de irmãos gêmeos.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Santa Cruz/RN, 05.12.2021  - 12:40



2 comentários:

  1. Muito boa, Heraldo. Frase áurea do texto: "Guardou no escuro dos olhos onde outros escuros se escondiam." - Gilberto Cardoso dos Santos

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  2. Em sentido figurado, áurea representa uma coisa magnífica, valiosa, brilhante.

    Valeu irmão Gilberto...

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