sexta-feira, 17 de setembro de 2021

É COBRA ENGOLINDO COBRA - Heraldo Lins

 






É COBRA ENGOLINDO COBRA


Saio da bodega e encontro um velho e um menino oferecendo-me um saco de carvão. O velho parece ser o gerente do negócio deixando ao menino a responsabilidade do peso. Eles olham para minhas compras como quem diz: vamos trocar? Li o pensamento de ambos, mas preferi perguntar: 

_ Quanto? 

O velho coça a barba, tira o cachimbo e, enchendo-o de fumo, diz:

 _ Cem. 

Prefiro olhar a cara suja do menino a olhar o velho tentando acender o cachimbo. Lembrei-me que lá em casa o carvão já está menos de meio saco, e Selma me recomendou um novo só lembrado agora. O velho aperta os olhos tentando ler meus pensamentos. Eu me faço de desinteressado dizendo: 

_ Lá em casa não está precisando, mas se o senhor fizer um preço bom, quem sabe... 

 — Esse carvão é feito de jurema morta achada no mato. O fogo desse carvão é muito quente e demora a se apagar.

 Pedi licença para voltar à bodega, retornando pouco tempo depois. O menino já estava sentado em cima do pneu do carrinho de mão, e o velho, de cócoras, riscava o chão. Um passante perguntou o preço do carvão, mas o velho disse que estava negociando comigo. Não respondeu ao transeunte e voltou-se para mim:

 _ Se o senhor comprar eu deixo, de graça, em sua casa, se for aqui perto.

 _ Pago trinta! 

Subitamente ele se dirige ao menino e faz gesto de irem embora calados. Poucos passos adiante param e ele volta: 

— Assim o senhor me mata. De cem baixar para trinta, é demais. Faço por oitenta.

_ Na bodega o preço é cinquenta e o senhor vem logo pedindo cem. 

_ É como eu disse: lenha catada sem agredir o meio ambiente, mas se o senhor me pagar os mesmos cinquenta, ainda ganha a entrega. 

_ Estou sem dinheiro. Gastei nessas compras. 

_ Eu preciso receber hoje. Se o senhor for à bodega e trouxer em mercadoria eu fecho o negócio por quarenta. O homem da bodega faz fiado para o senhor... 

 Alguma coisa me dizia que eu seria enganado, mesmo assim, achei a proposta boa. O preço estava bom e não havia como me deixar enganar por um velho e um menino.

 _ Fechado, vou buscar o valor correspondente em alimentos e lhe entrego. 

_ Confio no senhor, disse o velho. Nem preciso ir junto. Se o senhor puder, coloque sardinha e feijão no pacote, ele adora sardinha, apontando para o menino desinteressado. Complete o valor com arroz, pão e manteiga.

 Fui e voltei com trinta de mercadoria para pagar os quarenta combinados. Partimos para minha casa com o pacote em meu poder. Não se deve confiar em quem não conhecemos, essa é a regra. Aquele velho era muito suspeito. 

Selma, em casa, confidenciou que eu não fizesse negócio com esses ciganos que vivem de enroladas. Não são de confiança. Colocado o saco de carvão no depósito, entreguei-lhe as compras e ele logo saiu sem se dar ao trabalho de conferir o conteúdo. 

Fui à bodega contar vantagem de ter passado a perna em um cigano. Para dar testemunha do meu feito, recorri por várias vezes ao bodegueiro. Ele enfatizava que eu era o seu representante, pois o mesmo velho já o havia enganado. Foi apostado como era mentira o fato, mas o fazendeiro perdeu um novilho quando o bodegueiro confirmou a história. 

Selma continuava a cozinhar com o carvão restante enquanto eu me vangloriava na feira entre os amigos. Ela usava o carvão duas vezes por semana para carne assada na brasa, e como ainda havia carvão no saco antigo, só começou a usar o novo carvão, na outra semana. 

Até hoje sou lembrado na cidade como o sabichão que conseguiu enganar um cigano, mas esse título só permanece em voga porque Selma jurou ficar calada ao descobrir que mais da metade do saco negociado estava preenchido com casca de coco seco. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 04/09/2021 – 12:24



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