sexta-feira, 30 de julho de 2021

AS VOLTAS DO MUNDO - Heraldo Lins

 


AS VOLTAS DO MUNDO


O menino subiu até perto do dinheiro amarrado na ponta do pau de sebo. Deslizou ensebado sem sucesso. A molecada suja continuava se revezando enquanto os pais gritavam incentivando-os. Muitos nas costas de muitos tentavam tirar o prêmio. Essa brincadeira estava sendo o ponto alto da festa de emancipação política da cidade. No início da noite conseguiram retirar o dinheiro. O pai orgulhoso do filho esperto voltou para casa com um reforço a mais para a feira da semana. 


Enfileiraram-se ao redor da mesa para o jantar. Faltava Juliana, a única filha dentre os jovens filhos do casal. Deve estar no quarto! A mãe levantou-se e dirigiu-se para convocá-la para a última refeição da noite. Voltou chorando. Ela não estava em nenhum vão da casa, inclusive, suas roupas haviam sumido.  Morreu? O mais inocente perguntou. O pai deixou a sopa pela metade e foi revisar o já revisado guarda-roupa. Ficou um shortinho que ela não usava mais. De repente surgiu a vizinha comentando que quando todos saíram para a festa, o palhaço do circo veio buscá-la. Entraram rápido no veículo e saíram mais rápido ainda. 


O pai deixou o resto da sopa para que os outros não a desperdiçassem. Havia criado sua filha para um casamento de futuro. Como ficaria a família que teria um palhaço como parente? Os seus netos palhacinhos seriam. Não havia vontade de amar um palhaço. Seria apenas um a mais sem emprego definido. Palhaço poderia ser tudo, inclusive, fazer os outros igual a ele, como havia feito com o casal. Dormir debaixo de lona de circo, esse era o destino da sua filha. Se pelo menos o circo fosse com dois mastros, mas esse de apenas um, ainda por cima com a lona toda furada. 


Mas os dias foram passando, aqui acolá chegavam notícias que sua filha fora vista dançando no picadeiro. Só dez anos depois o casal soube mais notícias: estava uma mulher feita. Elegante, alta e bonita. Havia tido filhos, mas sua genética não permitia flacidez. Ele era avô, sim, de palhacinhos. Isso o derrubava em seu orgulho. Se aparecerem por aqui, mando para os quintos dos infernos, dizia ele amaciando o bigode. O circo estava com seus quatro mastros erguidos na Capital. Soube através da televisão. Poderia ir lá matar o filho de palhaça. Mas orientado pela esposa, ficou engolindo a ingratidão da qual não perdoara. 


Trinta anos se passaram sem mais notícias dos artistas circenses. O casal, agora sozinho na casa da esquina, vivia de uma minguada aposentadoria. Os outros filhos desapareceram em busca de trabalho por esse mundo afora. A cidade expandiu-se além da fronteira da sua casa. O velho sofria do coração. Seus passos lentos o levaram para a pia do banheiro. Não havia mais razão para manter o símbolo do seu orgulho. Raspou o bigode pintado pelo pincel do tempo. Estava acabado, pensava. Teria que ir colocar o marcapasso no dia seguinte. Quando um homem precisa ser aberto, está morto, esse era o seu pensamento. Mesmo assim, logo cedo a ambulância encostou para os procedimentos de praxe. Seu Maciel foi levado. A cirurgia aconteceu conforme o protocolo. Poucos dias depois se recuperava em casa. O médico lhe visitava regularmente. O jovem cirurgião era bem-visto na cidade. Atencioso, competente, acolhia a todos e atendia fora de hora.


Neste momento está auscultando seu Maciel. Escreve na receita os horários que deve tomar os comprimidos que lhe entrega. Seu Maciel, já bem recuperado e contente, pergunta-lhe o nome. O médico responde: meu nome é Juliano Mendes Maciel. Esse Maciel em meu nome foi a homenagem que minha mãe fez ao senhor, vovô.   



Heraldo Lins Marinho Dantas 

Natal/RN, 28/07/2021 – 09:24



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