de como as presas do cão adornam meu pescoço
valdenides cabral de araújo
dias
desde a epopeia de gilgamesh, a morte
transita, livremente, pelo texto literário.
como simbólica da finitude humana, a “indesejada das gentes”, como quer bandeira, está à espreita de cada um,
a suportar o peso da foice. por que não enterramos o cão (2020), livro de contos do escritor
theo g. alves,
já anuncia na orelha essa temática milenar,
universal.
nos contos que compõem o presente
livro, o narrador inverte a pauta da vida.
é pela morte que ele retorna à infância, aos desígnios da vida adulta, ao entendimento do outro enquanto
ser igual, quer bicho ou gente, acuados
ante as ziquiziras da vida.
tal
valter hugo mãe, theo opta pelo traçado
das minúsculas na construção narrativa, subvertendo o uso do ponto
final. como leitora da obra de mãe e de theo,
digo de similitudes e singularidades que aproximam os dois escritores, no sentido
de tornar comum o que é próprio,
posto que singulariza o modo de dizer, aproxima da fala. deus, por exemplo,
presença marcante na obra dos dois escritores, é grafado com minúscula; personagens são grafados com minúsculas. experiências de estilo para
tornar o texto mais próximo
da oralidade? estratégias de empatia com o leitor?
o uso da minúscula não torna a
narrativa insignificante. ao contrário, dá- lhe
um feitio estético singular. a morte, por atração, minusculariza tudo ao seu redor,
humaniza o divino
e a liquidez baumaniana aflora
no tempo, desde o conto que dá nome ao livro:
percebe que os relógios voltaram a acelerar o dia. talvez chegue em casa à hora de retornar. a
ampulheta quer retomar o dia perdido
e corre. trespassa as árvores e os cães
de rua, que seguem lentos e magros sobre a terra. não haverá tempo.
(alves, 2020, p.13)
onde o tempo se liquefaz, a morte,
impávida e insistente mantém a guarda,
põe mais um prato à mesa, marcando sua onipresença. Por querer, as presas do cão adornam o meu pescoço de
leitora, nessa viagem onde todos comungam metafórica e poeticamente do fim.
Nem precisei de toda “quarentena”
para sentir o quão valiosa é a ficção de
theo alves porque conhecia já a sua fórmula mágica de avessar os dias, de tornar úteis as coisas inúteis e até
adoçar o amargor cotidiano com seus versos transvertidos em prosa ou com sua prosa imantada de poesia. “não há quem possa dizer quantas
vidas cabem em quarenta dias” (alves, 2020, p. 65), apenas sentir
quantas mortes cabem em uma vida.
Quanto ao cão, sei que a todo custo
preciso mantê-lo fora da cova, alimentá-lo dentro de minha jaula particular para que, mesmo recostada à pedreira, eu me ouça e caminhe
apesar de.
Em tempo e à parte:
querido theo, obrigada por ter me permitido essa metamorfose. Varejeira, sobrevoei a carniça de seus mortos. Mas só encontrei vida. Por
isso, eis-me, aqui.
Assinado, itzpapalotl
desde o seridó imorredouro, 15 de dezembro de 2020
VALDENIDES CABRAL
Pós-Doutora em Teoria da Literatura; professora da UFRN; autora de O Corpo Erótico na Poética de Gilberto Mendonça Teles e de 4 livros de poemas: Pulsações, Pontos de Passagem, O Retórico Silêncio e Pulsar.
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