quinta-feira, 29 de julho de 2021

CARTA SOBRE OBRA DE THÉO G. ALVES - Valdenides Cabral




de como as presas do cão adornam meu pescoço

 

valdenides cabral de araújo dias

 

 

desde a epopeia de gilgamesh, a morte transita, livremente, pelo texto literário. como simbólica da finitude humana, a “indesejada das gentes”, como quer bandeira, está à espreita de cada um, a suportar o peso da foice. por que não enterramos o cão (2020), livro de contos do escritor theo g. alves, anuncia  na orelha essa temática milenar, universal.

nos contos que compõem o presente livro, o narrador inverte a pauta da vida. é pela morte que ele retorna à infância, aos desígnios da vida adulta, ao entendimento do outro enquanto ser igual, quer bicho ou gente, acuados ante as ziquiziras da vida.

tal valter hugo mãe, theo opta pelo traçado das minúsculas na construção narrativa, subvertendo o uso do ponto final. como leitora da obra de mãe e de theo, digo de similitudes e singularidades que aproximam os dois escritores, no sentido de tornar comum o que é próprio, posto que singulariza o modo de dizer, aproxima da fala. deus, por exemplo, presença marcante na obra dos dois escritores, é grafado com minúscula; personagens são grafados com minúsculas. experiências de estilo para tornar o texto mais próximo da oralidade? estratégias de empatia com o leitor?

o uso da minúscula não torna a narrativa insignificante. ao contrário, dá- lhe um feitio estético singular. a morte, por atração, minusculariza tudo ao seu redor, humaniza o divino e a liquidez baumaniana aflora no tempo, desde o conto  que nome ao livro:

percebe que os relógios voltaram a acelerar o dia. talvez chegue em casa à hora de retornar. a ampulheta quer retomar o dia perdido e corre. trespassa as árvores e os cães de rua, que seguem lentos e magros sobre a terra. não haverá tempo. (alves, 2020, p.13)

 

onde o tempo se liquefaz, a morte, impávida e insistente mantém a guarda, põe mais um prato à mesa, marcando sua onipresença. Por querer, as presas do cão adornam o meu pescoço de leitora, nessa viagem onde todos comungam metafórica e poeticamente do fim.


Nem precisei de toda “quarentena” para sentir o quão valiosa é a ficção de theo alves porque conhecia já a sua fórmula mágica de avessar os dias, de tornar úteis as coisas inúteis e até adoçar o amargor cotidiano com seus versos  transvertidos em prosa ou com sua prosa imantada de poesia. “não há quem possa dizer quantas vidas cabem em quarenta dias” (alves, 2020, p. 65), apenas  sentir quantas mortes cabem em uma vida.

Quanto ao cão, sei que a todo custo preciso mantê-lo fora da cova, alimentá-lo dentro de minha jaula particular para que, mesmo recostada à pedreira, eu me ouça e caminhe apesar de.

 

Em tempo e à parte:

querido theo, obrigada por ter me permitido essa metamorfose. Varejeira, sobrevoei a carniça de seus mortos. Mas só encontrei vida. Por isso, eis-me, aqui.


Assinado, itzpapalotl

desde o seridó imorredouro, 15 de dezembro de 2020


                   VALDENIDES CABRAL

    

Pós-Doutora em Teoria da Literatura; professora da UFRN; autora de O Corpo Erótico na Poética de Gilberto Mendonça Teles e de 4 livros de poemas: Pulsações, Pontos de Passagem, O Retórico Silêncio e Pulsar.



POR QUE NÃO ENTERRAMOS O CÃO?
Theo G. Alves
Patuá
168 págs.




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