terça-feira, 22 de junho de 2021

PALITANDO A DISCUSSÃO - Heraldo Lins


 PALITANDO A DISCUSSÃO  


O palito de dentes convocou uma assembleia para discutir melhores condições de trabalho. Os primeiros a chegarem foram os palitos de fósforos com sua paciência à flor da pólvora. Os palitos de espetinhos trouxeram seus próprios aparelhos portáteis de ares-condicionados e os de picolés, metidos em blusões de frio, sentaram-se longe dos demais.

Aberta a sessão, a caixa de fósforos disse que não tinha culpa alguma em manter seus respectivos palitos aprisionados, aliás, esse discurso foi aprovado pelas demais embalagens, e continuou: vocês só veem um lado. Não percebem que tenho que me abrir até o último ser utilizado. Muitas vezes, de madrugada, sou acordada para, além de me abrir, ainda sentir o pau nas costas. É muito doloroso riscar quarenta paus sem ser reconhecida. Depois desse esfrega ficamos sem condições de permanecer riscando. E digo mais: vocês não têm nenhuma consideração com quem lhes dá prazer. Depois da explosão incendiária, vão dormir o sono dos satisfeitos e nós ficamos sozinhas. Nem um simples aceno nós recebemos. Os palitos incendiários quiseram, literalmente, baixar o pau, mas os palitos de espetinhos, convocados para serem seguranças do evento, não permitiram. 

Em seguida os sucos, futuros picolés, defenderam seus pontos de vista: eu, como representante da turma do gelo, quero dizer que também não levamos uma vida das mais agradáveis. Somos conservados em baixíssimas temperaturas e logo que começa o processo de resfriamento, esses boçais de blusão de frio que ali estão, se enfiam na gente sem preliminares. Quando pensamos que não, opa, já foi. É traumático ficar com aquilo dentro sofrendo a discriminação de ser um eterno empalado. Nossa vida social se restringe a ficar olhando os clientes abrindo e fechando os freezers. O pior são as piadas de mau gosto. Os gaiatos perguntam: se eu fosse um picolé você me segurava onde? Todos da assembleia riram, inclusive, a carne falou: como meu amigo suco, nós sofremos do mesmo processo de empalamento. Os nossos torturadores se gabam de ter várias de nós agarradas a eles. Além de se enfiarem na gente, ficam rodando dentro. Pense num sufoco ser queimada por fora e rolada por dentro. Nós nascemos com uma fibra apertada e não tem como ficarmos paradas. Para onde nos giram, vamos juntas. Terminamos tontas e comidas. 

O palito de fósforos tomou a palavra: quero deixar bem claro que nosso trabalho é o mais sufocante. Ficamos apertados dentro dessa vagabunda de caixa esperando a hora de brilhar. É um calor infernal ali dentro. Como há pouco espaço, os relacionamentos homossexuais são comuns naquele ambiente. Aglomerado de palitos duros, doidos para se incendiarem, dá no que dá. Ai daquele que não quiser participar!  

Nesse momento, o palito de dentes, que estava à frente do encontro, saiu apressado para palitar. Não houve encaminhamento de propostas e os isqueiros junto com as frigideiras assumiram boa parte da demanda. O sorvete também desempregou vários palitos de picolés. A maioria dos participantes se arrependeu por terem reivindicado melhores condições de trabalho, e como não havia mais ninguém para coordenar, o cotonete, defendendo os patrões, disse: “nesse mundo globalizado quem tiver emprego, mesmo se for para ficar roçando em palitos duros, não reclame, pois pode piorar”.   


Heraldo Lins Marinho Dantas 

Santa Cruz/RN, 19/06/2021 – 11:08





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