quarta-feira, 23 de junho de 2021

O PODER DA ESCRITA - Heraldo Lins

 


O PODER DA ESCRITA  


Era uma vez um autor que passava a maior parte do tempo escrevendo e apagando. Ninguém jamais poderia julgá-lo porque nunca haviam lido o que ele escrevera. Quando perguntavam quando ele publicaria, ele desconversava. Dizia que estava fazendo a revisão para, em uma data próxima, presenteá-los com seus escritos. 

As pessoas influentes da cidade começaram a ficar preocupadas pensando que ele estava escrevendo sobre o comportamento de filhas rebeldes. Os pais com esse perfil começaram a bajulá-lo com presentes, e ao final da conversa pediam-lhe para continuar sem publicar. 

As religiosas, que tinham caso amoroso com o líder espiritual, ficaram intrigadas. Está registrando minha vida íntima? Também começaram a cercá-lo. Tanto as religiosas quanto as filhas rebeldes insinuavam-se, e como ele tinha a carne como os demais, caía nas tentações. 

Os sonegadores de impostos ficaram com dúvidas: e se ele está registrando o que chega à meia-noite sem as devidas notas fiscais? Foi-lhe dado vale refeições com abastecimento para meses, desde que não denunciasse o comércio ilegal. 

O prefeito da cidade passava um polegar por dentro do outro. Não queria que soubessem que o dinheiro da prefeitura estava sendo usado para beneficiar seus parentes. Foi-lhe dado um cargo público com salário acima da média.

A maioria dos homens o tinha como amigo... vai que ele estava anotando suas “puladas de muro”. Cada dia mais pessoas o acompanhavam. O deputado da região ofereceu dinheiro... muito dinheiro para ele não aceitar ser candidato. O perigo era ele escrever sobre os sistema usual de compras de votos. 

Quando passeava era acompanhado por milhares de subservientes, cada um com medo de ver seus defeitos expostos. Seguiam o cortejo oferecendo conforto material. O autor só sorria e anotava. Alguns tentavam ver as anotações por cima do ombro, mas eram em códigos, mesmo assim, em seguida apagados. 

Os maus pagadores resolveram se mudar da cidade. Não aguentaram ficar a noite inteira pensando que seriam desmascarados. Os pedófilos se suicidaram. Ladrões começaram a devolver os furtos. Os doentes pobres foram colocados na lista de espera do atendimento médico. A água chegou limpa e com abundância na casa dos consumidores. Todos começaram a cumprir com seus deveres com medo de serem desmascarados. Apenas o escritor fugiu à regra: continuava apagando o que escrevia.      


Heraldo Lins Marinho Dantas 

Natal/RN, 28/05/2021 – 14:08



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