sábado, 8 de maio de 2021

PREPARATIVOS PARA A FESTA - Heraldo Lins

 


PREPARATIVOS PARA A FESTA 



Um amigo apontou minha careca chamando-a de aeroporto de pernilongos. Disse-lhe que estou perdendo amigos na mesma proporção que perco cabelos. O corpo também vai ser perdido quando não encontrar referencial que justifique sua permanência por aqui. Não posso ignorar essas fugas capilares fingindo que não é o final dos tempos. Estou me preparando para essa viagem, e até já paguei caixão, padre, e assinei contrato com um grupo de jovens carpideiras que se especializaram em chorar e dançar funk durante o enterro. Já as vi em ação, e por isso estou convidando amigos e desconhecidos a participarem dos ensaios no barracão da escola de samba, todas as quartas-feiras, à noite.  


Além dos antigos, quero trazer novas pessoas para meu círculo de amizade. Os amigos de infância não podem, por recomendação médica, levantar peso acima de três quilos. Fazer novas amizades tem como objetivo assegurar mão de obra capaz de me levar na última viagem. Há seis alças no paletó de madeira e por isso são necessários dois ou três seguradores por alça. É muito chato a pessoa ficar com os dedos vermelhos sem ter alguém para substituí-lo. Oferecer a alça e não encontrar quem o ajude é o mesmo que parar o carro e o carona dizer que vai em sentido contrário.  


Às vezes os carregadores trocam de lado para aguentarem o peso, e é nesse momento que o caixão pode cair deixando-me no meio da rua. Se isso acontecer, e o féretro chegar ao cemitério sem o falecido, o coveiro vai ficar jogando-me praga impedindo-me de entrar no céu. Eu sei disso porque já fui coveiro. Cada praga é descontada em uma semana de estada no purgatório. Lá se lava louça, retelha casa e arma ratoeira. Se for defunta, fica sem fazer maquiagem e unhas durante o mesmo período. 


O adeus derradeiro requer tanto cuidado quanto para nascer. Em termos comparativos o coveiro bêbado corresponde ao médico cansado. O pai e a mãe são substituídos pelos parentes de olho na herança. O lençol cheio de bordados, troca-se por areia na cara. O berço, pelo caixão. Excluindo essas diferenças, o resto é igualzinho.  



Heraldo Lins Marinho Dantas (arte-educador)

Natal/RN, 03/03/2021 – 17:45

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