sábado, 2 de janeiro de 2021

ESQUECIMENTO RELAXANTE - Heraldo Lins

 


ESQUECIMENTO RELAXANTE

 

 

Hoje tentei falar de poesia. Não deu! Apaguei tudo e estou reiniciando ao me lembrar de uma poetiza que fez parte de um livro publicado com recursos próprios. O editor disse, às outras iniciantes, que tirasse aquilo que ela estava chamando de poesia. Aquilo era só um amontoado de palavras. Por compaixão, as outras combinaram em publicar, assim mesmo, o amontoado. Desde o início, tenho me policiado bastante para não fazer o mesmo. Já apaguei vários textos que estavam prontos para enviar. Alguns ruins outros piores. O difícil é ter coragem de colocar no lixo a produção de mais de seis horas de trabalho. Muita gente pode até pensar que o autor perdeu seu tempo, mas na verdade isto é o ensaio para o que virá logo em seguida. Quem escreve não tem tempo para mais nada. Precisa ficar à disposição do ócio criativo. Nas aulas de arte havia um professor preocupado com o produto final. Questionei que havia uma concepção valorizando o processo, e não o produto. Claro que o processo visa um objetivo, mas ninguém chega a um bom resultado sem experimentações. É necessário relevar o lado medíocre que cada um de nós temos. Não vejo nada demais em combinar nada com coisa alguma, desde que não tenha a cara de pau de publicar. Nessas inutilidades é que nasce a verdadeira Mona Lisa. Falamos da genialidade de Leonardo da Vinci, mas ninguém fala dos rascunhos que ele fez. Não existe uma fôrma, senão seria uma fábrica, e não arte. Acredito que já falei disso, mas se falei me perdoem. Minha memória está se indo. Não lembro se vou ou venho. Preciso consultar a agenda constantemente para me situar no mapa do tempo. Em cada horário estou em um lugar. Se estou no vôlei é porque são dezesseis horas. Estando no banheiro... bom... deixa para lá... Estou adorando essa minha amnésia. Antes eu me preocupava com a alta do dólar, a bolsa de valores. Hoje nem sei se existe mais isso. Só me lembro de chacrinha dizendo: alôoooo Terezinhaaaaaa...!!! e aquelas gostosonas gritando Úúúúúúúúú... início dos anos...sei lá... estão vendo! Não sou mais eu. Nem lembro mais o ano que Chacrinha fazia sucesso. Poderia pesquisar no Google, mas, sabido é quem guarda na memória. Esse negócio de consultar é novo. Consulta só quem fazia era mãe quando estava perto de parir. Eu ficava do lado de fora da sala. Só ela e o doutor consultando. Eu olhava pelo buraco da fechadura. Não gostei nada de ver mãe naquela posição. Quando ela me chamava para acompanhá-la, eu olhava para pai, e, silenciosamente, dizia: vai tu que a mulher é tua. Foi meu primeiro trauma. De lá para cá, quando a minha mulher diz vou me consultar, eu digo: veja se tem uma médica. Eu confio mais nas mulheres porque sabem, por experiência própria, como isso funciona. Ela me obedece. Ufa! Minhas preocupações estavam certas. Tantos médicos presos por não se conterem.      

 

 


 

Heraldo Lins Marinho Dantas (arte-educador)

Natal/RN, 29/12/2020 – 14:48

showdemamulengos@gmail.com

84-99973-4114

 

 

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