quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

INCONVENIENTE - Heraldo Lins

 



INCONVENIENTE

 

 

 

Já foi? não diga! Pode tirar a vassoura de detrás da porta. Nem precisou jogar sal no fogo. Essa mulher parece que não tem nada para fazer. Vive de casa em casa bisbilhotando. Mãe já deixou ela fora várias vezes. Passou o cadeado no portão, mas parece que não tem vergonha. Com esse sorriso dissimulado, vai entrando. Nem precisa oferecer ela já vai comendo. E ainda pede dinheiro emprestado. É muita cara de pau. Inventa de ser rezadeira. Passa ramo só para ter acesso as casas. Faz um mastigado e depois diz que era mau-olhado só porque o ramo ficou murcho. Claro! As folhas retiradas de árvore e balançadas durante um mastigado de meia hora, a tendência é murchar.  Outro dia pediu dinheiro emprestado aqui na vizinha. Passando o tempo e não pagava. Quando a vizinha cobrou ela disse que não devia, e que aquele dinheiro havia sido dado a ela de presente pelos serviços prestados à família. Para todos os netos e netas faz festa de aniversário. Não tem onde cair morta. Sai arrecadando... o bolo fulana vai dar, as lancheiras sicrana se comprometeu... dá risadas sem graça. Sua boca vive repuxada pelo sorriso de plástico que vive expressando. Às vezes chora na cozinha de uma quando é expulsa da casa de outra. Ela escolhe uma cozinha rival para falar da injustiça sofrida. Naquela cozinha que lhe dá apoio, procurar lavar a louça. Se oferece. Não tem como dizer não. É um jogo que nunca termina. É mais duradouro do que a copa américa.

 

Às vezes recebe um presente de alguém e já transfere para outra como se ela tivesse comprado. Seu semblante humilde dá pena para quem não a conhece. Quando há festas populares lá está ela nos camarotes dos ricos. Chega logo cedo ao pé-da-escada. Fica lá até alguém conhecido ter compaixão e convidá-la para subir. Mas não é em todo camarote que ela faz isso. Só quando percebe que há naquela família alguém do coração mole. Em toda casa enlutada ela vai rezar o terço. Reza até o caixão sair, e sai atrás chorando. Chora junto com a família. Chora sozinha desde que alguém esteja registrando seu choramingo. Faz verso para aniversariantes. Não sei onde consegue tanta inspiração. Nem machado de Assis tinha tanto domínio com a palavra escrita quanto ela. Já vi ela fazer uma mistura de frases Machadianas com poesias de Fernando Pessoa, acrescentando a filosofia de Pedro Badulaque. Por várias vezes tentei falar com ela sobre essas preciosas pérolas literárias, mas, desconversava. Um dia insisti tanto que encontrou uma saída dizendo que eram os extraterrestres que vinham todas as noites trazer-lhes novas ideias. Se eu quisesse vê-los ela poderia me dar o acesso, mas para isso precisava antes fazer o aniversário de Julhinha, sua neta, e estava sem dinheiro. Desisti de ver os extraterrestres.

           


 

Heraldo Lins Marinho Dantas (arte-educador)

Natal/RN, 26/12/2020   10:19  

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