INCONVENIENTE
Já foi? não diga! Pode tirar
a vassoura de detrás da porta. Nem precisou jogar sal no fogo. Essa mulher
parece que não tem nada para fazer. Vive de casa em casa bisbilhotando. Mãe já
deixou ela fora várias vezes. Passou o cadeado no portão, mas parece que não
tem vergonha. Com esse sorriso dissimulado, vai entrando. Nem precisa oferecer
ela já vai comendo. E ainda pede dinheiro emprestado. É muita cara de pau.
Inventa de ser rezadeira. Passa ramo só para ter acesso as casas. Faz um
mastigado e depois diz que era mau-olhado só porque o ramo ficou murcho. Claro!
As folhas retiradas de árvore e balançadas durante um mastigado de meia hora, a
tendência é murchar. Outro dia pediu
dinheiro emprestado aqui na vizinha. Passando o tempo e não pagava. Quando a
vizinha cobrou ela disse que não devia, e que aquele dinheiro havia sido dado a
ela de presente pelos serviços prestados à família. Para todos os netos e netas
faz festa de aniversário. Não tem onde cair morta. Sai arrecadando... o bolo
fulana vai dar, as lancheiras sicrana se comprometeu... dá risadas sem graça.
Sua boca vive repuxada pelo sorriso de plástico que vive expressando. Às vezes
chora na cozinha de uma quando é expulsa da casa de outra. Ela escolhe uma cozinha
rival para falar da injustiça sofrida. Naquela cozinha que lhe dá apoio,
procurar lavar a louça. Se oferece. Não tem como dizer não. É um jogo que nunca
termina. É mais duradouro do que a copa américa.
Às vezes recebe um presente
de alguém e já transfere para outra como se ela tivesse comprado. Seu semblante
humilde dá pena para quem não a conhece. Quando há festas populares lá está ela
nos camarotes dos ricos. Chega logo cedo ao pé-da-escada. Fica lá até alguém
conhecido ter compaixão e convidá-la para subir. Mas não é em todo camarote que
ela faz isso. Só quando percebe que há naquela família alguém do coração mole.
Em toda casa enlutada ela vai rezar o terço. Reza até o caixão sair, e sai
atrás chorando. Chora junto com a família. Chora sozinha desde que alguém
esteja registrando seu choramingo. Faz verso para aniversariantes. Não sei onde
consegue tanta inspiração. Nem machado de Assis tinha tanto domínio com a
palavra escrita quanto ela. Já vi ela fazer uma mistura de frases Machadianas
com poesias de Fernando Pessoa, acrescentando a filosofia de Pedro Badulaque. Por
várias vezes tentei falar com ela sobre essas preciosas pérolas literárias, mas,
desconversava. Um dia insisti tanto que encontrou uma saída dizendo que eram os
extraterrestres que vinham todas as noites trazer-lhes novas ideias. Se eu
quisesse vê-los ela poderia me dar o acesso, mas para isso precisava antes
fazer o aniversário de Julhinha, sua neta, e estava sem dinheiro. Desisti de
ver os extraterrestres.
Heraldo Lins Marinho Dantas (arte-educador)
Natal/RN, 26/12/2020
10:19
84-99973-4114
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