domingo, 30 de agosto de 2020

O CORDEL DE VALDENIDES - O ABECÊ DA DOUTORA

 



A REALIZAÇÃO DE UM SONHO (Gilberto Cardoso dos Santos)

Quem tem o privilégio, como eu, de conhecer de perto a professora Valdenides Cabral, pos-doutora em Teoria da Literatura, sabe de seu genuíno interesse pela poesia popular. No mestrado, descobrimos a razão: foi através de clássicos do cordel, lidos por seu pai, que ela começou suas incursões literárias. Poetisa dos versos brancos e livres, vez por outra nos falava de seu sonho de um dia ter seu próprio ABC de cordel. Eu a incentivava pra que tentasse fazê-lo. 

Um dia surpreendeu-nos com o sonhado poema, ao qual intitulou de ABC Desmetrificado. Expôs as estrofes no telão e pediu-me que as lesse pra turma. De fato, não se enquadravam cem por cento nos requisitos do gênero pretendido, excessivamente rigoroso quanto a exigências de "Rima, Métrica e Oração," mas era um belíssimo texto! Fez-me pensar em Morte e Vida Severina, poema de João Cabral de Melo Neto, escrito, segundo o próprio autor, com a pretensão de ser um cordel. Ele frustrou-se na expectativa, mas tinha produzido algo que viria a tornar-se o carro-chefe de sua obra. De igual modo, Valdenides acabara de produzir um de seus melhores poemas.

Desde o começo, achei lindo esse desejo dela, acalentado desde a infância. Durante a Pandemia de 2020, solicitei o texto e, entre um combinado e outro, burilamos o que já estava bom a fim de ajustá-lo às formalidades do gênero. Eis o cordel.
 

O ABECÊ DA DOUTORA - A vida de Valdenides num folheto de cordel

  (Autores: Valdenides Cabral e Gilberto Cardoso dos Santos)

A

Aqui fala Valdenides

De sobrenome Cabral

São José do Sabugi

É minha terra natal

Sou filha do Seridó

Residi em Caicó

Distante da capital.

B

Bem verdade é que Deus dá

Somente um verso ao poeta

E ao restante do poema

É o diabo quem completa

Vou contar a minha história

De poesia e vitória

Com o diabo longe meta.

C

Como me tornei poeta

De mim mesma me perdi

E um dia, lá nas cacimbas

Do meu velho pai ouvi

“Tome tento na subida

Pois é íngreme a descida

Faça como a adverti.”

D

Disse: “Evite escorregar

Pois o erro é doloroso

Só Jesus Cristo desceu

E subiu vitorioso

E quando no céu chegou

Feito Deus comemorou

E disse todo manhoso:”

E

“Enquanto estive na Terra

Muita coisa sucedeu

Mas no meio dos enganos

Meu poder prevaleceu

Nem mesmo na minha infância

Pratiquei alguma errância

Por isso lá mando eu!”” 

F

Foi meu pai, sábio nas coisas

Da Terra e do Céu também

Que queria que eu vivesse

Da maneira que convém

Pra tudo quanto dizia

Orientava ou pedia

Queria ouvir meu amém.

G

Gentil às vezes, queria

Que eu fizesse um juramento

De perder a virgindade

Somente no casamento

Ou, pra não ser rapariga

Nesse mundão duma figa

Que eu entrasse num convento.

H

Honrada eu devia ser

Rezar, pedir oração

E não viver nessa vida

Entregue à corrupção

Pra não virar pecadora
 
Nem ser uma sofredora 

E cair na perdição.

I

Idílico, cantarolava

Versos para me ninar

E me mostrava as princesas

E os príncipes d’além mar:

E eu dormia sonhando

Tanta coisa imaginando

Que não quero nem lembrar.

J

João Evangelista eu via
No Pavão Misterioso

Que levantou voo da Grécia

No seu transporte engenhoso

Princesa da Pedra Fina,
De Magalona e Porcina

Na voz do pai cuidadoso.

L

Lembro que escrevi uns versos

E botei meu pai pra ler

Ele os chamou de coisas

E me mandou refazer

Disse assim: “Faça cordel

Seja à métrica fiel

Sem das rimas esquecer.”

M

Mas não fiquei desgostosa

Ao ver o seu desprazer

Pois conhecia o meu velho

E esse seu jeitão de ser

Na sua simplicidade

Mostrava sinceridade

Jamais tentou me ofender.

N

Não deixei de ser poeta

Apesar da frustração

Poetizando sem rima

E sem metrificação

Meu velho não entendia

Pois cordel não parecia

Eram versos sem noção.

O

O tempo me deu uns príncipes

Do reino da poesia

E princesas da palavra

Gente que me comovia

Gilberto Mendonça Teles

Também Cecília Meireles

Quintana me divertia.

P

Perdi-me, mas me encontrei

Na poética de Alfonsina

De Zila, Diva, Marize

Hilda, Lígia e Marina

Conceição, Adélia Prado

Poetas do meu agrado

Cuja escrita me fascina.

Q

Quando um João, não o Evangelista

Que também era Cabral

Me conduziu às alturas

Com a poética original

Não de cordel, certamente

Cheio de rima aparente

Senti algo especial.

R

Radiante, achei na prosa

A essência da poesia

Cortázar me fez alada

Com as penas da fantasia

Vi-me uma Alice no espelho

E ao conversar com o coelho

Achando-me, me perdia.

S

Somente nas poesias

Ao meu pai não agradei

Graças aos livros que li

Professora me tornei

Íngreme foi a jornada

Mas eu me tornei prendada

E no lar me recatei.

T

Tive o prazer de encontrar-me

Na função de educadora

Asas de livros abertos

Me tornaram pós-doutora

Hoje, já aposentada

Professora e mãe amada

Sinto que fui vencedora.

U

Uns cordéis de carne e osso

Ainda pude fazer

Rimados, metrificados

Como deveriam ser

A minha filha e meu filho

Aos meus olhos trazem brilho

E desejo de viver.

V

Vou aos trancos e barrancos

Com medo de escorregar

Dizendo Madadayô,

Mandando o fim se afastar

Prossigo de fronte erguida

E até o ocaso da vida

Eu quero poetizar.

X

Xucra ao tracejar meus versos

Na brancura do papel

Ainda quero um poema

À rima e à métrica fiel

Repleto de poesia

Que caiba na melodia

Da voz de um bom menestrel.

Z

Zelosa em tudo que faço

Quero ter um ABC

Que agradaria a meu pai

Como o que agora lê

Um resumo da existência

Aninhado na cadência

Completo, de A a Z.



Por fim, eis poema que já nasceu belo em sua versão primária:



ABC DESMETRIFICADO (Valdenides Cabral)

Se é verdade que Deus dá ao poeta
o primeiro verso
e o Diabo responde pelos outros,
vou contar a vocês a minha história,
que por ser tão cheia de vitórias,
dispensei a ajuda do segundo,
para traduzir no meu verso
o dia que me perdi de mim
pra ser poeta.

Um dia, lá longe, nas Cacimbas,
onde se perdeu a minha infância
ouvia meu pai dizer
tome tento na subida
porque o que dói nas errâncias,
neste mundo de Meu Deus,
é a íngreme descida
que só o Grande desceu.
E subiu vitorioso,
cheio da empáfia dos Deuses,
dizendo todo manhoso
que lá “também mando Eu”.

Meu pai sabendo das coisas
da Terra e do Céu também,
fez-me fazer juramento
que neste mundão de uma figa
não virasse rapariga.
Melhor viver num convento,
rezar, pedir oração,
pra não virar pecadora
nem ser uma sofredora
como as que o mundo já tem.

Cantarolava seu versos
como canção de ninar
E me mostrava as princesas
e os príncipes d’além mar:
o João Evangelista,
do Pavão Misterioso
Princesa da Pedra Fina,
Magalona e Porcina
e eu dormia sonhando
com Castelos e feitiços,
com fadas e precipícios
que não quero nem lembrar.

E quando escrevi meus versos
E meu pai chamou de coisas,
Mandou logo refazer: faça cordel
Que é meu gosto.
Se não conhecesse o velho
E o seu jeitão de ser,
Tinha sentido desgosto.

E fui crescendo na vida
Conhecendo outros príncipes
Desses que escrevem livros,
Me deixando dividida:
Bandeira, Quintana, João,
Cabral que nem eu, por certo...
Depois um tal de Gilberto
Que tocou meu coração.

Também conheci princesas:
Lígia, Clarice, Marina,
Hilda, Cecília, Adélia,
Zila, Diva e Marize,
Todas livres, acenando
pros versos que ainda não fiz.
  


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Um comentário:

  1. Maravilha!!!
    Um belo texto!
    Texto textura tecido a duas mãos.
    O Blog da Apoesc sempre sendo esse mural de boas amostras.

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