quinta-feira, 23 de julho de 2020

SOBRE VIVER E OUTRAS PRIORIDADES - Gilberto Yoshinaga






SOBRE VIVER E OUTRAS PRIORIDADES

Coube a um ser microscópico mostrar a nós, humanos, que também somos muito pequenos. Muitos dos feitos que julgávamos ser gigantes símbolos de nosso predomínio dentre as outras espécies animais, como a engenharia de obras colossais, o domínio da manipulação genética e das técnicas de clonagem, a capacidade de cruzar o mundo em poucas horas e os avanços da inteligência artificial, tudo isso se transformara em ostentação inútil ante o minúsculo organismo que nos empurrou, quase de forma compulsória, ao confinamento.
Hospedeiros de uma ameaça letal que nos tornamos, optamos pelo isolamento social, por recomendação dos cientistas. Indústria e comércio cerraram a maioria de suas portas. Voos foram cancelados e fronteiras foram fechadas. Ruas e shopping centers viraram desertos de concreto e aço. Calculadoras pararam de somar e bolsas de valores tiveram sua futilidade desnudada. E os abraços e beijos, que a pressa cotidiana já vinha tornando cada vez mais raros, passaram a ser um perigo quase proibido.
Nem mesmo os templos escaparam à regra, pois a fé institucionalizada também se convertera em coisa supérflua. Nenhuma reza surtia efeito ou assegurava proteção. Em qualquer canto, nenhum pranto comovia nenhum santo.
Suposições apocalípticas não faltaram. “É o fim dos tempos”, professaram uns; “só os justos salvar-se-ão”, teorizaram outros. Fato é que o vírus, inimigo invisível que éramos incapazes de deter ou combater, não escolhia credo, etnia, classe social, status ou caráter. E, tão logo, passou a arrebatar brancos, pretos e amarelos, ateus e religiosos de toda vertente, abastados e miseráveis, celebridades e anônimos. Humanos e desumanos, todos eram presa fácil para a nova peste lotérica.
Tal pandemia também subverteu conceitos de êxito e modernidade, bem como retirou algumas algemas da espontaneidade da natureza. Camponeses analfabetos ou semi-alfabetizados seguiram praticamente livres em suas rotinas bucólicas e sem paredes, enquanto muitos executivos pós-graduados tiveram de se trancafiar em claustrofóbicos home offices. O congestionamento que migrou das ruas para a internet fez dela uma Babilônia mais poluída, enquanto o céu, livre do excesso de automóveis a lhe cuspir toneladas e mais toneladas de dióxido de carbono, ganhou surpreendentes tons de vida em sua paleta de cores. Em caso muito peculiar e simbólico, a ausência de voyeurs em um zoológico também inspirou um casal de ursos pandas a acasalar - o que veterinários tentavam induzi-los a fazer, sem sucesso, havia dez anos.
Os aprisionados, cada qual em seu lar, passaram a enfrentar rotinas diferenciadas. Com roupas de grife escondidas nos armários e carros de luxo recolhidos às garagens, milionários se entediaram. Os bens já não eram garantias de estar bem. E os pobres, como sempre, recorreram a novas formas de improviso para driblar as dificuldades decorrentes da paralisação coletiva.
Vidas ceifadas à parte, e isso ocorreu em todos os estratos, o período pode ter sido propício para que, além de sobreviver, muitos tivessem contato com realidades diferentes e, com isso, aprendessem a viver e a repensar seus planos e prioridades. Um bon vivant de meia-idade, que já não contava mais com sua criadagem, viu-se forçado a assumir certos afazeres domésticos pela primeira vez na vida e, com isso, despertou para a necessidade de valorizar mais cada funcionário. Uma costureira que não podia mais ir à padaria aprendeu e apaixonou-se pela arte de fazer pão, de forma a alimentar o desejo de mudar de profissão. Pais que se viram na condição de professores, pois também os miúdos deixaram de frequentar assentos escolares temporariamente, entenderam a complexidade e a importância do processo educacional. E habitantes de metrópoles descobriram que podiam cultivar alimentos diversos, ainda que nas varandas de seus apertados apartamentos. Deu-se, portanto, uma reviravolta de costumes e valores.
Em suma, o instinto de sobreviver, talvez, possa ter nos ensinado mais sobre viver. É cedo para concluirmos filosofia tão profunda. Mas a pequenez de nossa existência, exposta por um organismo microscópico, certamente foi fundamental para percebermos que nós, humanos, não podemos mais seguir a agir como se fôssemos o vírus mais letal para o planeta - e, por consequência, para nós mesmos, ainda que não o percebamos. Oxalá a vida coletiva prossiga sem ponto final, mas com reticências...



Sobre o autor: 

• Autor da biografia “Thaíde: Sr. Tempo Bom” (Editora Novo Século, no prelo - 2020).

• Organizador e co-autor do livro “Thaíde: 30 Anos Mandando a Letra” (Editora Novo Século, 2016).

• Autor da biografia "Nelson Triunfo: Do Sertão ao Hip-Hop". www.nelsontriunfo.com - livro contemplado pelo Prêmio Cultura Hip-Hop 2014 (Funarte).

• 1º colocado no II Prêmio Escritor Universitário "Alceu Amoroso Lima" (1999), realizado pela Academia Brasileira de Letras (ABL) e Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE).

• 3º colocado no II Prêmio Escritor Universitário "Alceu Amoroso Lima" (1998), realizado pela Academia Brasileira de Letras (ABL) e Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE).



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