quinta-feira, 2 de julho de 2020

DIÁLOGO EM REDE - Maria Goretti Borges


Diálogo em Rede

Oi, Matilde! Aqui é o João. Podemos conversar um pouco? Que tal uma chamada de vídeo logo mais às dezessete horas? Estou precisando conversar, você sabe (...) nesses tempos de pandemia, sem ter com quem conversar, estou com o peito apertado. Os espaços de comunicação virtual, geralmente são genéricos e muito interpessoais; tenho participado de lives, mas cá para nós, ainda prefiro a conversa ao pé do ouvido. Tenho tentado expandir o diálogo nas mídias sociais, no entanto, confesso, acho tudo muito truncado, sem margem para o contraditório. Logo mais nos veremos, até então.

Exatamente como imaginava, assim é bem melhor! Entendo, você estava acostumado com a conversa cara a cara, olho no olho! Não precisa ficar melancólico, quer saber? Nessa pandemia os tempos são outros. Os encontros ocasionais mal nos permitem reconhecer os rostos que estão por trás das máscaras. Para o pós pandemia, fala-se de um “novo normal”.

Outro dia, num bate papo com o Clovis, depois de tanto falarmos de política, economia e pandemia, fiquei besta com a tirada dele: Só sei que nada sei, filosofou.

Ele está certo. A cada dia uma descoberta, e em cada descoberta algo mais a saber. E digo mais, com o advento da covid-19 questões econômicas e sociais que ainda estavam camufladas vieram à tona e tudo ficou ainda mais claro, a nudez da miserabilidade no Brasil se mostrou na sua versão mais sórdida. Senão vejamos: 46 milhões de brasileiros sem conta em banco, sem acesso regular à Internet, sem CPF ativo.

Bem que o Clovis me falou dos brasileiros invisíveis. Parece a lei do sexagenário, aqueles que, de tão velhos, não serviam para o trabalho; e esses invisíveis, de tão pobres, não se adequam ao modelo capitalista vigente.

Ele falou também sobre adiar a data do ENEM, adiar para igualar o desigual. Falou ainda sobre o princípio da equidade, e pediu minha opinião. Sorri com o canto da boca, nada respondi por não saber bem o que falar. Você entende, Matilde?

Mais ou menos, pelo que sei, os alunos que estavam sem as aulas remotas continuaram do mesmo jeito. E por falar em educação, um ministro que não chegou a sê-lo, exibiu um currículo bonito, que ia da Argentina à Alemanha. Esse tal currículo só serviu para o descrédito ainda maior da nossa educação. E pensar que depois de Abraham Weintraub teríamos fechado o ciclo de horrores pelo qual vem passando a educação brasileira, hum!

A filha do Clovis que é professora falou outro dia numa rede social que a pandemia aproximou muitas pessoas que antes tinham um convívio diário. E usou o termo “tão perto e tão longe!” Continuou explicando que não conhecia a realidade dos seus alunos, suas vidas reais para além dos muros da escola. “Nem mesmo a minha, nunca pensei ter que me adaptar a uma realidade dessas, de tanta exposição, logo eu que sou tímida! Me superei e meus alunos também.” Fiquei admirado com tudo que ela falou, Matilde!

Isso muito nos alegra, é realmente admirável uma relação afetuosa e responsável! Pena que nem todas se deem dessa forma. Acredito que assim como eu, você também acompanhou o caso do menino Miguel. Pelo que podemos ver, as relações sociais vão tomando novos contornos e se adaptando às exigências do momento, apenas isso. No trocar das máscaras, a face da indiferença continua a mesma! “O que eu fui anos para os seus, você não foi alguns minutos para o meu” (Mirtes Renata).

O sofrimento de uma criança me dói o coração. Ana, minha sobrinha, costumava contar histórias de um poeta lá do sertão, um dia leu para mim alguns versos da criança e o urubu, assim dizia: “Na foto é apresentada/ Uma criança morrendo. Na cena aqui registrada/ Não há ninguém socorrendo. O tempo vai transcorrendo/ E a cena grita ao olhar. Miserável é o lugar/ E a condição sub humana/ onde a ave, soberana/ Espera se alimentar” (Gilberto Cardoso).

Nossos aplausos para os poetas que com sutileza e sabedoria trazem à tona os bastidores da humanidade. Em se tratando de humanidade, somos de certa forma todos indigentes, pois:  “Quem ocupa o trono tem culpa/ quem oculta o crime também/ quem duvida da vida tem culpa/ quem evita a dúvida também tem” (Engenheiros do Havaí). Curte? Gostei desse olhar de canto, ou, melhor dizendo, de soslaio (risos).

Fez-me lembrar de outro poeta também lá do sertão, que muito preocupado com o futuro da população fazia-lhes um chamamento a reflexão sobre a importância do voto. “É bem fácil entender, eu sei que você me entende. Porque voto não se compra, consciência não se vende. Seu voto vai apontar pra tudo ser diferente, pra ninguém ser indigente, pra se ter onde morar. Emprego pra trabalhar, uma boa educação. Não perca sua razão, o voto é precioso(...)” (Hugo Tavares).

Esse papo está pra lá de bom! É como dizia a Dolores, uma amiga do passado. No muro das lamentações, uns choram porque não apanham, outros porque não lhe dão. Mas diga-me quais são as últimas do Clovis, além dos arroubos filosóficos.

Ele me perguntou se eu estava lembrado da história do foro privilegiado. Indaguei de imediato: “esse papo de novo?!” O Clovis respondeu que sim, e continuou: “eles, quase todos, bebem da mesma fonte, se lambuzam do mesmo mel.” E ainda afirmou que dessa vez o lamaçal é mais fétido e a abelha rainha trabalha junto, isso é, também se lambuza no mel! Nessas horas penso no Joel, vigia da minha rua, o único foro privilegiado que ele queria na vida era casa, comida e máscara para atravessar esse período da quarentena. Matilde, conheço a história de um padre também lá do sertão, que num período de eleições fez uma faixa com o seguinte recado: “adutora sim, voto sim. Adutora, não voto não.” (Mons. Raimundo Barbosa). Surtiu um efeito espetacular, estou pensando seriamente em incentivar o Joel a se rebelar.

Muitas histórias. Esse sacerdote tem todo o meu aplauso! Avante, minha gente! Se Joel me entendesse, talvez ele me entenda, leria para ele versos de um poeta também lá do sertão. “ o herói caído/ entre sangue/ e fezes de seu cavalo. menos herói que/ homem/ envolto na fúria de seus inimigos/ em sua voracidade. o homem sorri/ o herói lembra-se do/ futuro:/ dulcineia não está morta/ e seu rocim é ainda/ impávido. só o homem foi relegado/ ao chão/ - o herói é vivo sempre” (Théo Alves).

Decerto, Matilde, não sei se entenderia, mas o Joel é um homem sábio! Outro dia quando conversávamos sobre ética, ele me falou do salmo 15, e com uma voz que vinha da alma, com toda ternura do seu coração, recitou o salmo 131. “Senhor, meu coração não é pretensioso/ Nem meus olhos são cheios de orgulho. Não aspiro a grandezas que superam minha capacidade/ Antes, modero e tranquilizo meus desejos. Como uma criança está nos braços da mãe. Assim estão meus desejos nos meus braços”.

Conhecer o Joel, mesmo que através de você, me encheu de esperança e fé no futuro! Para falar a verdade, ultimamente tenho analisado e refletido bastante sobre nossa situação frente a essa pandemia e concluo que estamos participando do jogo da roleta russa, contando com a sorte, no dito salve-se quem puder. É tudo muito inconsistente, genérico, fraudulento. Não fomos capazes de seguir o exemplo, essa população é sem dúvidas contrária (anti), São Tomé.

Matilde, agradeço demais a sua atenção, meus olhos já estão a doer, ressecados e abrasados. Se o Clovis estivesse nessa conversa conosco, participando dessa chamada de vídeo, diria que é a tal da luminosidade. Para lhe demonstrar a minha satisfação vou terminar a nossa conversa com versos de mais um poeta do sertão, Marcos Cavalcanti!





10 comentários:

  1. Belo texto, minha amiga. Mais um pra sua coleção de pérolas preciosas. Fico feliz pela citação. - Gilberto Cardoso dos Santos

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  2. Lindooo👏👏👏👏 Conhecer o Joel nos traz fé!

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  3. Excelente ,maravilhoso ,já já ,sai um livro 👏👏👏👏

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  4. Excelente! Reflexões necessárias...👏👏👏👏

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  5. Belíssimo texto! ��������

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  6. Parabéns, Goretti.
    A cada dia uma reflexão melhor.
    João Maria de Medeiros

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  7. Parabéns a nova escritora, me orgulho de ser seu amigo...

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  8. Diálogo dos bons, ilustre professora, uma diversão a leitura🤝🤝🤝, me senti participante da conversa descontraída, aberta e inteligente. Francamente, progressista articulista, um texto satisfativo.👏👏🤝

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  9. Uma honra estar no rol de poetas de uma personagem imaginária que tão bem discorre sobre este tempo de Thanatus. O Brasil de Joel, Matilde e de todos nós, morre todo dia!

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