Diálogo em Rede
Oi, Matilde!
Aqui é o João. Podemos conversar um pouco? Que tal uma chamada de vídeo logo
mais às dezessete horas? Estou precisando conversar, você sabe (...) nesses
tempos de pandemia, sem ter com quem conversar, estou com o peito apertado. Os
espaços de comunicação virtual, geralmente são genéricos e muito interpessoais;
tenho participado de lives, mas cá para nós, ainda prefiro a conversa ao pé do
ouvido. Tenho tentado expandir o diálogo nas mídias sociais, no entanto,
confesso, acho tudo muito truncado, sem margem para o contraditório. Logo mais
nos veremos, até então.
Exatamente
como imaginava, assim é bem melhor! Entendo, você estava acostumado com a
conversa cara a cara, olho no olho! Não precisa ficar melancólico, quer saber?
Nessa pandemia os tempos são outros. Os encontros ocasionais mal nos permitem
reconhecer os rostos que estão por trás das máscaras. Para o pós pandemia,
fala-se de um “novo normal”.
Outro dia, num
bate papo com o Clovis, depois de tanto falarmos de política, economia e
pandemia, fiquei besta com a tirada dele: Só sei que nada sei, filosofou.
Ele está
certo. A cada dia uma descoberta, e em cada descoberta algo mais a saber. E
digo mais, com o advento da covid-19 questões econômicas e sociais que ainda
estavam camufladas vieram à tona e tudo ficou ainda mais claro, a nudez da
miserabilidade no Brasil se mostrou na sua versão mais sórdida. Senão vejamos:
46 milhões de brasileiros sem conta em banco, sem acesso regular à Internet, sem
CPF ativo.
Bem que o
Clovis me falou dos brasileiros invisíveis. Parece a lei do sexagenário, aqueles
que, de tão velhos, não serviam para o trabalho; e esses invisíveis, de tão
pobres, não se adequam ao modelo capitalista vigente.
Ele falou
também sobre adiar a data do ENEM, adiar para igualar o desigual. Falou ainda
sobre o princípio da equidade, e pediu minha opinião. Sorri com o canto da
boca, nada respondi por não saber bem o que falar. Você entende, Matilde?
Mais ou menos,
pelo que sei, os alunos que estavam sem as aulas remotas continuaram do mesmo
jeito. E por falar em educação, um ministro que não chegou a sê-lo, exibiu um
currículo bonito, que ia da Argentina à Alemanha. Esse tal currículo só serviu
para o descrédito ainda maior da nossa educação. E pensar que depois de Abraham
Weintraub teríamos fechado o ciclo de horrores pelo qual vem passando a
educação brasileira, hum!
A filha do
Clovis que é professora falou outro dia numa rede social que a pandemia
aproximou muitas pessoas que antes tinham um convívio diário. E usou o termo “tão
perto e tão longe!” Continuou explicando que não conhecia a realidade dos seus
alunos, suas vidas reais para além dos muros da escola. “Nem mesmo a minha,
nunca pensei ter que me adaptar a uma realidade dessas, de tanta exposição,
logo eu que sou tímida! Me superei e meus alunos também.” Fiquei admirado com
tudo que ela falou, Matilde!
Isso muito nos
alegra, é realmente admirável uma relação afetuosa e responsável! Pena que nem
todas se deem dessa forma. Acredito que assim como eu, você também acompanhou o
caso do menino Miguel. Pelo que podemos ver, as relações sociais vão tomando novos
contornos e se adaptando às exigências do momento, apenas isso. No trocar das
máscaras, a face da indiferença continua a mesma! “O que eu fui anos para os
seus, você não foi alguns minutos para o meu” (Mirtes Renata).
O sofrimento
de uma criança me dói o coração. Ana, minha sobrinha, costumava contar
histórias de um poeta lá do sertão, um dia leu para mim alguns versos da
criança e o urubu, assim dizia: “Na foto é apresentada/ Uma criança morrendo.
Na cena aqui registrada/ Não há ninguém socorrendo. O tempo vai transcorrendo/
E a cena grita ao olhar. Miserável é o lugar/ E a condição sub humana/ onde a
ave, soberana/ Espera se alimentar” (Gilberto Cardoso).
Nossos
aplausos para os poetas que com sutileza e sabedoria trazem à tona os
bastidores da humanidade. Em se tratando de humanidade, somos de certa forma
todos indigentes, pois: “Quem ocupa o
trono tem culpa/ quem oculta o crime também/ quem duvida da vida tem culpa/
quem evita a dúvida também tem” (Engenheiros do Havaí). Curte? Gostei desse
olhar de canto, ou, melhor dizendo, de soslaio (risos).
Fez-me lembrar
de outro poeta também lá do sertão, que muito preocupado com o futuro da
população fazia-lhes um chamamento a reflexão sobre a importância do voto. “É
bem fácil entender, eu sei que você me entende. Porque voto não se compra,
consciência não se vende. Seu voto vai apontar pra tudo ser diferente, pra
ninguém ser indigente, pra se ter onde morar. Emprego pra trabalhar, uma boa
educação. Não perca sua razão, o voto é precioso(...)” (Hugo Tavares).
Esse papo está
pra lá de bom! É como dizia a Dolores, uma amiga do passado. No muro das
lamentações, uns choram porque não apanham, outros porque não lhe dão. Mas
diga-me quais são as últimas do Clovis, além dos arroubos filosóficos.
Ele me
perguntou se eu estava lembrado da história do foro privilegiado. Indaguei de
imediato: “esse papo de novo?!” O Clovis respondeu que sim, e continuou: “eles,
quase todos, bebem da mesma fonte, se lambuzam do mesmo mel.” E ainda afirmou
que dessa vez o lamaçal é mais fétido e a abelha rainha trabalha junto, isso é,
também se lambuza no mel! Nessas horas penso no Joel, vigia da minha rua, o
único foro privilegiado que ele queria na vida era casa, comida e máscara para
atravessar esse período da quarentena. Matilde, conheço a história de um padre
também lá do sertão, que num período de eleições fez uma faixa com o seguinte
recado: “adutora sim, voto sim. Adutora, não voto não.” (Mons. Raimundo Barbosa). Surtiu
um efeito espetacular, estou pensando seriamente em incentivar o Joel a se
rebelar.
Muitas
histórias. Esse sacerdote tem todo o meu aplauso! Avante, minha gente! Se Joel
me entendesse, talvez ele me entenda, leria para ele versos de um poeta também
lá do sertão. “ o herói caído/ entre sangue/ e fezes de seu cavalo. menos herói
que/ homem/ envolto na fúria de seus inimigos/ em sua voracidade. o homem
sorri/ o herói lembra-se do/ futuro:/ dulcineia não está morta/ e seu rocim é
ainda/ impávido. só o homem foi relegado/ ao chão/ - o herói é vivo sempre”
(Théo Alves).
Decerto,
Matilde, não sei se entenderia, mas o Joel é um homem sábio! Outro dia quando
conversávamos sobre ética, ele me falou do salmo 15, e com uma voz que vinha da
alma, com toda ternura do seu coração, recitou o salmo 131. “Senhor, meu
coração não é pretensioso/ Nem meus olhos são cheios de orgulho. Não aspiro a
grandezas que superam minha capacidade/ Antes, modero e tranquilizo meus
desejos. Como uma criança está nos braços da mãe. Assim estão meus desejos nos
meus braços”.
Conhecer o
Joel, mesmo que através de você, me encheu de esperança e fé no futuro! Para
falar a verdade, ultimamente tenho analisado e refletido bastante sobre nossa
situação frente a essa pandemia e concluo que estamos participando do jogo da
roleta russa, contando com a sorte, no dito salve-se quem puder. É tudo muito
inconsistente, genérico, fraudulento. Não fomos capazes de seguir o exemplo,
essa população é sem dúvidas contrária (anti), São Tomé.
Matilde, agradeço
demais a sua atenção, meus olhos já estão a doer, ressecados e abrasados. Se o
Clovis estivesse nessa conversa conosco, participando dessa chamada de vídeo,
diria que é a tal da luminosidade. Para lhe demonstrar a minha satisfação vou
terminar a nossa conversa com versos de mais um poeta do sertão, Marcos
Cavalcanti!
Belo texto, minha amiga. Mais um pra sua coleção de pérolas preciosas. Fico feliz pela citação. - Gilberto Cardoso dos Santos
ResponderExcluirLindooo👏👏👏👏 Conhecer o Joel nos traz fé!
ResponderExcluirGORETTI, MAIS UM EXCELENTE TEXTO!
ResponderExcluirExcelente ,maravilhoso ,já já ,sai um livro 👏👏👏👏
ResponderExcluirExcelente! Reflexões necessárias...👏👏👏👏
ResponderExcluirBelíssimo texto! ��������
ResponderExcluirParabéns, Goretti.
ResponderExcluirA cada dia uma reflexão melhor.
João Maria de Medeiros
Parabéns a nova escritora, me orgulho de ser seu amigo...
ResponderExcluirDiálogo dos bons, ilustre professora, uma diversão a leitura🤝🤝🤝, me senti participante da conversa descontraída, aberta e inteligente. Francamente, progressista articulista, um texto satisfativo.👏👏🤝
ResponderExcluirUma honra estar no rol de poetas de uma personagem imaginária que tão bem discorre sobre este tempo de Thanatus. O Brasil de Joel, Matilde e de todos nós, morre todo dia!
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