domingo, 30 de abril de 2017

Belchior e a divina (e trágica) comédia humana.



O mais triste da morte de Belchior é o quanto ela é absurda e despropositada, mas ao mesmo tempo  também foi a consequência de fatos absurdos e despropositados. Afinal, estamos falando de um dos maiores cantores e compositores da MPB, criador de clássicos como “Mucuripe”, “Como nossos pais (considerado um verdadeiro hino dos jovens que cresceram nos anos 70)” e “Paralelas”, que interrompeu uma carreira de relevância há 10 anos, bem como o contato com sua família, velhos amigos e seus funcionários, para ingressar numa vida de semiclandestinidade, marcada por domicílios incertos, despesas de hospedagem não-pagas no Brasil e no exterior e, principalmente, recusa em aparecer na mídia. Mas o que desconcerta mesmo é que, por mais estranha que essa situação fosse, muitos fãs do artista sempre reagiram com revolta a qualquer comentário que a pusesse em xeque, dizendo que ele simplesmente queria viver uma vida desapegada, longe dos holofotes e de compromissos que o consumissem, e que o resto seriam exageros por parte de uma imprensa que nunca esteve totalmente de acordo com sua postura independente e crítica às mazelas sociais, e viu nessa postura a oportunidade perfeita para desmoralizá-lo. Chegaram a dizer que  estava simplesmente vivendo suas utopias ao lado de quem realmente se importava com ele.
No entanto, por mais louvável que seja essa lealdade, esse sentimento nunca deve ser tal que os cegue para os desdobramentos e complicações de suas atitudes. Não se pode considerar com naturalidade um homem com mais de trinta anos de carreira e uma vida tanto profissional quanto familiar estabilizadas largar tudo isso de uma hora para outra e não dirigir mais a palavra às suas filhas nem encerrar as pendências que possuía com seu escritório. E muito menos que esse homem, sendo adulto e com condições de se sustentar, viva durante tempo indeterminado sem pagar as despesas que realizou e sendo mantido por outras pessoas, e pior, com um discurso que denunciava uma análise um tanto paranóica da sua vida, em que julgava-se perseguido pela mídia brasileira, conforme o jornalista gaúcho Juremir Machado, que foi procurado por ele, percebeu e relatou num artigo que, como não seria diferente, foi considerado uma traição por admiradores do cantor. E não se trata de uma ficção contada para difamá-lo, e sim de algo comprovado por fontes seguras, como documentos e depoimentos de familiares e pessoas próximas a ele. Esses comportamentos não são característicos de uma pessoa desapegada que quer viver uma vida simples, e sim de alguém em fuga que não parece ter noção dos efeitos que suas ações drásticas terão nas vidas de outros, e o mesmo pode ser dito daqueles que o ajudaram nessa empreitada e poderiam tê-lo despertado para esses efeitos. Viver à margem, especialmente quando se é alguém que tem tanto a oferecer, nunca deve ser considerada uma opção viável, já que sempre ocasiona a perda de algo, tanto que, depois de tanto tempo de distância, suas filhas agora podem revê-lo, só que num caixão. O que ele precisava era de ajuda para não perder a noção da realidade, e, aparentemente, quem estava com ele não se preocupou em fornecê-la.
A melhor lição que se pode tirar dessa história é que, caso alguém perceba comportamentos antissociais em pessoas próximas, é melhor não ignorar isso, e sim tentar descobrir qual o seu problema e fazer tudo o que estiver ao alcance para que ela seja ajudada. Em casos extremos, isso pode fazer a diferença entre viver e morrer. E, principalmente, evitar romantizar situações em que alguém é isolado ou alijado da convivência com os outros, pois isso não ajudará a que elas tenham fim.
Agora não dá mais pra dizer "Volta, Belchior", e sim "Descanse em paz, Belchior". Que você finalmente tenha encontrado a paz que nunca teve neste mundo.


Renan II de Pinheiro e Pereira.

Um comentário:

  1. Quanta vida se desperdiça por não enfrentarmos a nós mesmos. Os fantasmas que criamos, são da mesma forma, consumados por nós.

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