O GALO E O PREÁ
(APÓLOGO)
Já faz alguns dias, num
gabinete da cultura potiguar aconteceu um encontro inusitado. Dois
representantes da fauna, um local e outro universal, pela primeira vez tomaram
parte em um polêmico debate.
Um galo, eloquente porém
magoado, desabafa:
– Tudo isso é uma grave inversão de valores!
Os agentes da modernidade manipulam mundos e fundos para edificar suas obras.
Derrubam uma muralha para construir um muro.
Com um olhar inquieto, um
preá, recostado no canto da sala, hesitava:
– Os tempos mudam... As pessoas, também.
– A mudança existe e é necessária. Mas, isso não
significa substituir, destruir ou mesmo esquecer o valor das coisas.
– Você está ressentido, logo passa. Ninguém vai
se lembrar de você. Então poderá viver em paz.
– Essa é boa! Um nanico provinciano querendo me
levar na conversa. Você, enquanto cavídeo, não passa de um roedor bisonho e
iletrado.
A discussão se avolumava.
A substituição do galo pelo preá no único veículo oficial de divulgação das
produções culturais do Estado gerou a celeuma. O preá, aparentando controle da
situação, dizia:
– Meu objetivo é chegar aos grotões e de lá
trazer informações, divulgar por lá o que se faz por aqui e carregar daqui
notícias para lá.
– Que vexame! Você só repete bem o discurso dos
outros. Mas jamais será um arauto. Revela-se um mero entregador, desnecessário
até, porque o correio já faz esse serviço de entrega. Excelente serviço, por
sinal.
– Não se trata disso, você entende...
– O que entendo é que um pequeno pretório de
intelectuais, sem sintonia com leitores e eleitores, prelibaram-se em alterar o
curso da História.
– Você dramatiza, amigo...
– Ora bolas! Você surge de uma moita qualquer,
seduzido por um canto de sereia, e ainda quer ostentar memória e orgulho.
– Assim você me ofende...
– Que nada! Esta é sua verdadeira estirpe: de
linhagem inglória, animal roedor, fugidio, que habita entre rochas e buracos de
tabuleiros ermos e áridos, longe do convívio humano.
– Essa doeu, cara.
– Esta minha atitude reflete o descontentamento
das pessoas em geral. Imagine se a cada novo governo, os administradores
resolvessem erradicar as marcas do governo anterior. Aqui muda o nome de uma
praça, ali de uma avenida, lá adiante o de uma escola, de um hospital, de uma
ponte, até de um beco... com o passar
dos anos, essas plásticas descaracterizariam a identidade histórico-cultural da
cidade. Tudo novo e efêmero!
– Amigo, seu discurso comove, mas não convence.
Os idealizadores deste novo projeto viram em meu nome um novo paradigma, mais
arrojado, moderno, ágil e de alta performance.
– Vejam só quem fala! Você me obriga a biografar
sua triste sina. Apesar de origem tupi, seu nome – formado por um conjunto de
fonemas, espremidos enfumaçados – soa sem melodia nem brilho. Para nascer,
passasse pelas cirurgias gramaticais de síncope e aférese: apereá > pereá
> preá. Nascesse com gênero incerto. Há quem diga que você é masculino,
outros classificam como feminino.
– Sou parte da natureza, e na minha espécie
existem machos e fêmeas.
– Tudo bem. Todo ser animal tem sua cara-metade.
Mesmo assim, seu caso é complicado. Você mais parece um gênero unissex.
A conversa seguia
acirrada. O preá tentando preservar a própria face e a de seus pistolões
políticos e intelectuais. O galo, por sua vez, não poupava críticas às atitudes
do preá e de seus defensores. Assim, alegava que era uma ave doméstica,
comestível, reprodutora, de briga, líder do quintal, de convívio amistoso entre
os membros da casa. Seu gênero inequívoco – masculino – formava par romântico
com a galinha, sua consorte. E não deixando arrefecer o ânimo combativo,
arrematou:
– Caro preá, a minha
história é uma epopéia. Lucrécio já dissera que o canto do galo assombra leão.
Na Grécia e Roma antigas, tornaram-se famosas as lutas de galos. E vem de longe
a tradição de me chamarem relógio dos pobres.
– Galo que fora de hora
canta, cutelo na garganta! Sentenciou o preá.
– Você não passa de um roedor, pobre,
pequeno e preguiçoso. Nas estórias populares, nos conta o grande Cascudo, você
é retratado como um tipo de finório, intruso, aproveitador, penetra, dançando,
comendo e bebendo sem convite.
– Tudo isso é folclore...
– Da lenda nasce a legenda. Reconheço
que em tempos de seca, você vira boa caça para o sertanejo. Mas todo mundo sabe
que um preá não faz um jantar. Há muita gente por aí que te deglute como
tira-gosto em mesas de bar do interior, e às vezes só te encontrando em
botequins de beira de estrada.
– Confesso que não esperava isso de
você!...
– Não lhe estou faltando com a verdade.
Eu vivo tão bem no campo como na cidade. Meu nome repercute sonoramente. Meu
canto ritmado vem com o alvorecer, chamando os homens à labuta. Já disse um
poeta que vários galos tecem uma manhã. Outro poeta local já escreveu: “No alto
da abadia, / o galo do catavento / acende as cores do dia”. Além disso,
lembre-se da missa do galo, celebrada pelo Papa.
– O que sei é que todos somos iguais perante a
lei. Você teve sua chance, agora tenho a minha...
– Sei cá! As evidências têm demonstrado
que todos são iguais perante a lei, mas não diante do juiz. E justiça boa e
imediata só com um bom e bem pago advogado!
– Você está radicalizando...
– Ingênuo cavídeo, eu, o rei do quintal
e do poleiro, não posso desperdiçar meu tempo e meu canto com um interlocutor
arredio ao convívio social. Você virou apenas um parvenu, pois os ares da
cidade não disfarçaram seus gestos burlescos e lamuriantes.
– Olha que o destino pesa
implacavelmente sobre todos nós!...
– O meu destino é glorioso. Basta
lembrar pra você que o Cristo admoestou a Pedro sobre as três negações do
apóstolo antes de um irmão meu cantar na madrugada.
– Águas passadas não movem moinhos, você
sabe...
– As águas passam, mas a história
permanece. Infelizmente, parece que este postulado não foi considerado pelos
seus projetistas. Deram-lhe uma roupagem nova, adornaram-lhe com uma virtual e
refulgente armadura, para lhe afugentar os cães de caça e não deixar você
morrer na cidade. Já que dizem nas redondezas que preá só vem à cidade
morto.
Como se
percebe ao acompanhar esta narrativa, a conversa entre as rivais figuras da
fauna cultural não foi nada harmoniosa. De um lado, um preá aperreado e
reticente, mas desfrutando as benesses do novo cargo. Do outro, um galo,
galante e retórico, argumentava ferrenhamente contra os expoentes da política
local pelo golpe histórico desferido na memória cultural do povo e da terra
potiguar.
– Amigo, na verdade as intenções são
boas... procurava contornar o pacato preá.
– Não seja idiota! De boas intenções o
inferno está cheio. Não vou baixar a crista, nem emudecer meu canto, mas lhe
garanto: vou estar de esporão afiado para defender meu nome e minha honra.
Pois, onde o galo canta, janta.
– Caro galináceo, deixe eu viver minha
história. O sol brilha para todos.
– De sol e filosofia você não entende
nada. Vive nos capinzais à beira de córregos e lagoas, saindo só ao anoitecer,
para se alimentar de gramíneas. Enquanto eu compartilho da comida dos humanos.
Sirvo-lhes de banquetes em festas de Natal, casamento e aniversário.
– Você sempre ironizando...
– Chega! A sorte está lançada. Espero
que você não seja vítima de uma “preazada”, e vá passar o resto da vida
solitário num buraco.
Esta
história, ocorrida recentemente nesta cidade, foi-me contada por um amigo
jornalista, que me segredou também ter passado a vida como um galo: no topo da cidade,
tentando despertar os tolos do sono da ignorância e os sábios dos sonhos
mirabolantes.
Zedaluz
Natal,
junho/2003.
(publicado
no Diário de Natal)
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