Eu me lembro que ele tinha uma
olhar conformado e andava sempre com o
cigarro aceso no canto da boca. Era cotó de uma perna, na altura de um pouco
abaixo do joelho. Usava uma só muleta, onde escanchava o cotoco no pau que a
arqueava ao meio quando estava parado, de sorte que ficava com os braços livres
para conversar.
Das lembranças que guardo de
menino, uma das mais caras é a silhueta de Pimpão, recortada contra a ladeira
do Matadouro. A roupa sempre encardida e, tanto quanto me lembro, a alpercata
de couro cru da mesma cor do barro da ladeira.
Sempre tive uma predileção
especial e misteriosa pelos mutilados, tronchos, coxos e cegos de todos os
tipos e variedades. Por via de consequência, eu estimava Pimpão em um grau mais
alto dentro da escala de querer bem aos tipos que compunham a paisagem humana
de Palmares. Aliado a isto, minha admiração era aumentada pelo que tinha de
lúdica e mágica a atividade que lhe dava o pão daqueles dias ensolarados e
noites calorentas. Ele era fogueteiro de profissão, e, me parece, a perna fora
arrancada no estouro de uma bomba. Os meninos é que diziam. Da boca dele, eu
nunca ouvi; nunca tive coragem de perguntar.
Tirante o povo rico, a gente
do comércio, que dispunha de dinheiro para comprar fogos industrializados,
marca Caramuru, o resto, a maioria, se abastecia para o São João com os
produtos manufaturados pelo Pimpão. Bomba, busca−pé, peido−de−velha, foguetes,
traque−navio, pólvora para ronqueira, estrelinha, lágrimas de Nossa Senhora,
mosquetão. De tudo, por fim.
Nas festas de santos e como tem
santo naquela terra! Era cada pipoco de entupir o oco do mundo. O foguetório
comia no centro e riscava de fogo e fumaça o céu azul daquelas noites festivas.
Bonita mesmo era a festa do dia 8 de dezembro. Os fogos de artifício encantavam
os olhos e eram disparados a partir do toque da brasa no cigarro de Pimpão. Ele
ficava a poucos metros da armação que sustentava a parafernália, as faíscas lhe
banhando, os olhos brilhando de alegria e do reflexo dos fogos. Não tinha coisa
mais linda. Dê por visto um andor enfeitado!
Pois aconteceu que se deu de
falar que Pimpão ia construir um circo. Com lona e mastro. De começo, um
corruchiado sem cabimento; depois, a conversa foi engrossando, e, por fim, os preparativos
da empreitada dominavam a cidade. Um ruge−ruge festivo que contaminava
predominantemente os moleques.
Estabeleça−se que todas as
coisas do interior naquele tempo eram encantadas. Mas dentre todos os objetos encantados,
o circo ocupava posição de proeminência e destaque naquele cipoal de coisas mágicas
e misteriosas. O anão, o palhaço de cara lavada durante o dia, os trapezistas,
as rumbeiras que lavavam panos nas barracas do circo, os filhos dos artistas
com sotaques de outras terras e os chapas que armavam a lona e pegavam mulheres
na zona compunham um painel tão colorido e rico, que esborravam no entendimento
dos meninos e os faziam responder com gritos vibrantes às safadezas puxadas
pelo homem das pernas−de−pau, perpetrando sua propaganda pelas ruas.
Pimpão, encantado por via de
sua arte de fogueteiro, subiu na escala de bem−querença e tornou−se duplamente
misterioso. Logo, passou−se dos rumores para a certeza plena e ele seu cigarro, sua muleta e seu
aleijão passou a desfilar pelas ruas ostentando a nova condição, sério,
convicto, compenetrado do peso e da pompa da gerência de tão encantado e
festivo empreendimento. Tire por certo
que não ficou vivente daquela praça que não tivesse levado
uma prosa sobre o circo que estava nascendo. E, da conversa para
a participação na empreitada, foi só triscar. Pimpão começou a
costurar a lona com os sacos de açúcar vazios dados pelos
comerciantes. As cadeiras, tronchas e toscas, foram feitas a partir
de caixotes do Sabão Jabacó.
Empreitada difícil e de caro
orçamento foi o mastro que sustentaria a cobertura. Isso
foi resolvido de maneira simples, deliberando Pimpão que o circo
ficaria descoberto, bastando ter lona ao seu redor. A cobertura
viria mais tarde, muitas léguas depois, em meio à prosperidade
que todos queriam e já vislumbravam. E nas Pedreiras,
o sonho foi tomando jeito e forma: a área circular
capinada a vigorosos golpes de enxada.
Foram nascendo os poleiros de
tábuas brutas e as cadeiras da primeira classe. Os sacos,
costurados uns aos outros, iam construindo a lona, colorida
de branco, carimbada com os nomes das usinas de açúcar.
Mão−de−obra incansável e graciosa, a garotada não
tirava por baixo, e ajudava com competência. A participação
direta no nascedouro da empresa, o contato com os problemas que
iam surgindo não chegaram a abalar o encantamento e a aura
do circo.
A troupe foi−se formando à
medida que a construção ia tomando pé. Estácio, malandro
de jogo e camelô competente, seria o mágico. Em que pese
ser seu número uma tampinha de garrafa que ora sumia de uma
mão e aparecia em outra, ora saía do ouvido, ora era arrancada
do nariz, nada lhe tirava a estampa e a pose de um Mandrake de
chapéu Ramezoni, a demonstrar pelas esquinas o número que
iria exibir no circo. Antevia a glória e as viagens:
− Do estrangeiro, nós manda
lembrança.
Irmão de Dudé, assim conhecido
por ser apenas o irmão de Dudé, presepeiro que
ofuscava até o nome do irmão, era o domador de feras, a passear
orgulhoso com a cachorra Xolinha.
A cachorra tinha uma fita
encarnada no pescoço, e pisava lépida, não tinha que ver
mesmo uma artista de circo. Tal e qual Estácio, Irmão de Dudé também
não aguentava a ansiosa espera do dia da estréia, enquanto se
construía o circo, e demonstrava nas ruas o número que iria
apresentar. Enchia os olhos de Xolinha com um olhar furioso e
berrava:
− Cu pra riba!
E a cachorra se punha
espichada, jogando pro alto as patas traseiras e se equilibrando
com as duas da frente. Encantava os curiosos. Irmão de Dudé impava
de orgulho e se danava a falar dos leões e elefantes que iria
treinar, assim chegasse o circo à África de Tarzan.
As rumbeiras seriam recrutadas
entre as raparigas da Coréia, as mais bonitinhas que
dançavam no Pastoril do Velho Rabeca.
E só. A não ser que se desse
ouvido aos comentários de que Pimpão, cotó de uma perna,
ia ser o equilibrista, atravessando o picadeiro num
arame, amparado por sua muleta.
Ele não desmentia os rumores e
alimentava o falatório.
Comandante sereno, capitaneava
o empreendimento que ia tomando formas, ora mais
ligeiro, ora mais lento, mas sempre cercado de entusiasmo e
carinho. O circo era de Palmares, e todos torciam por seu sucesso.
A estréia foi retumbante,
realçada pela luz frouxa dos lampiões de carbureto. Algumas
cadeiras quebraram, os meninos entraram por baixo da
lona, mas a maioria pagou e a renda alteou ainda mais os
sonhos de grandeza da troupe.
Estácio e Irmão de Dudé
espicharam como puderam os seus números, metidos em suas
roupas novas de artistas, feitas de chita colorida. A cagada de
Xolinha no meio do picadeiro,
nervosa como toda prima−dona,
não tirou o brilho do espetáculo.
Mas a alegria chegou mesmo foi
com o número das rumbeiras, que preencheram o
restante do espetáculo cantando e dançando, acompanhadas pelo
pífano do competente Goelinha.
Os espetáculos continuaram
cheios durante a semana; o público prestigiava e estimulava
Pimpão, comandante, dono, bilheteiro, vigia e animador. Estácio
gozava as delícias do sucesso e andava durante o dia com um ar
misterioso. Até incorporara umas expressões estrangeiras ao seu
número – tupi−guarani, segundo ele – que repetia enquanto a
tampinha bailava em seus dedos:
− Virêite e fonceonêiti.
Irmão de Dudé dava tratos de
estrela a Xolinha, que andava agora com uma calcinha
de rendas enfiada no traseiro.
− É pra guardar o priquito
dela, senão os cachorros emprenham a bichinha. E completava inchado,
engolindo corda do povinho:
− Tás pensando o quê? É cu de
artista!
Finalmente, a despedida.
Chegado o dia da partida, o povo parou para ver a desmontagem
da obra. A Prefeitura cedeu o caminhão do lixo para a
primeira viagem. Catende, três léguas na frente, seria o começo de
uma série infindável de paradas.
Um mundão sem fim a ser
percorrido, terras estrangeiras e nacionais. Um universo.
Promessa de glórias, de fortuna e de muitos aplausos.
Enquanto as tábuas eram
jogadas na carroceria do caminhão, Pimpão comandava e
monologava, como se não estivesse vendo o povo ao seu
redor.
− Vou m’embora. Só torno rico
e com um circo grande.
Vai levar muitos anos até eu
voltar.
Pimpão, Estácio e o motorista
na boléia. O resto, inclusive as rumbeiras, se arranchou na
carroceria, por cima das tábuas. O motor foi ligado. Choveram
adeuses; os artistas olhavam as casas, que só voltariam a ver
num futuro que eles não sabiam quando. Só sabiam−no venturoso
e rico. Xolinha latia e Irmão de Dudé ainda estralou uma
banana para a multidão que ficava para trás.
− Nunca mais vocês vão mangar
de nós, seus cornos.
Por muito tempo depois, Pimpão
ainda trabalhou seus traques, foguetões e bombas.
A temporada em Catende foi um
fracasso total e humilhante. Até fome passaram.
Pimpão, eu não garanto, mas os outros voltaram a pé.
Alguns ainda conseguiram bigu na estrada. As tábuas e a lona ficaram por lá mesmo: não arranjaram comprador, nem
puderam pagar o transporte de volta.
Até chover, choveu. Durou uma semana a primeira e
última viagem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comentários com termos vulgares e palavrões, ofensas, serão excluídos. Não se preocupem com erros de português. Patativa do Assaré disse: "É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”