terça-feira, 15 de setembro de 2015

O CIRCO DE PIMPÃO -Luiz Berto



Eu me lembro que ele tinha uma olhar conformado e  andava sempre com o cigarro aceso no canto da boca. Era cotó de uma perna, na altura de um pouco abaixo do joelho. Usava uma só muleta, onde escanchava o cotoco no pau que a arqueava ao meio quando estava parado, de sorte que ficava com os braços livres para conversar.

Das lembranças que guardo de menino, uma das mais caras é a silhueta de Pimpão, recortada contra a ladeira do Matadouro. A roupa sempre encardida e, tanto quanto me lembro, a alpercata de couro cru da mesma cor do barro da ladeira.

Sempre tive uma predileção especial e misteriosa pelos mutilados, tronchos, coxos e cegos de todos os tipos e variedades. Por via de consequência, eu estimava Pimpão em um grau mais alto dentro da escala de querer bem aos tipos que compunham a paisagem humana de Palmares. Aliado a isto, minha admiração era aumentada pelo que tinha de lúdica e mágica a atividade que lhe dava o pão daqueles dias ensolarados e noites calorentas. Ele era fogueteiro de profissão, e, me parece, a perna fora arrancada no estouro de uma bomba. Os meninos é que diziam. Da boca dele, eu nunca ouvi; nunca tive coragem de perguntar.

Tirante o povo rico, a gente do comércio, que dispunha de dinheiro para comprar fogos industrializados, marca Caramuru, o resto, a maioria, se abastecia para o São João com os produtos manufaturados pelo Pimpão. Bomba, busca−pé, peido−de−velha, foguetes, traque−navio, pólvora para ronqueira, estrelinha, lágrimas de Nossa Senhora, mosquetão. De tudo, por fim.

Nas festas de santos e como tem santo naquela terra! Era cada pipoco de entupir o oco do mundo. O foguetório comia no centro e riscava de fogo e fumaça o céu azul daquelas noites festivas. Bonita mesmo era a festa do dia 8 de dezembro. Os fogos de artifício encantavam os olhos e eram disparados a partir do toque da brasa no cigarro de Pimpão. Ele ficava a poucos metros da armação que sustentava a parafernália, as faíscas lhe banhando, os olhos brilhando de alegria e do reflexo dos fogos. Não tinha coisa mais linda. Dê por visto um andor enfeitado!
Pois aconteceu que se deu de falar que Pimpão ia construir um circo. Com lona e mastro. De começo, um corruchiado sem cabimento; depois, a conversa foi engrossando, e, por fim, os preparativos da empreitada dominavam a cidade. Um ruge−ruge festivo que contaminava predominantemente os moleques.

Estabeleça−se que todas as coisas do interior naquele tempo eram encantadas. Mas dentre todos os objetos encantados, o circo ocupava posição de proeminência e destaque naquele cipoal de coisas mágicas e misteriosas. O anão, o palhaço de cara lavada durante o dia, os trapezistas, as rumbeiras que lavavam panos nas barracas do circo, os filhos dos artistas com sotaques de outras terras e os chapas que armavam a lona e pegavam mulheres na zona compunham um painel tão colorido e rico, que esborravam no entendimento dos meninos e os faziam responder com gritos vibrantes às safadezas puxadas pelo homem das pernas−de−pau, perpetrando sua propaganda pelas ruas.

Pimpão, encantado por via de sua arte de fogueteiro, subiu na escala de bem−querença e tornou−se duplamente misterioso. Logo, passou−se dos rumores para a certeza plena e ele seu cigarro, sua muleta e seu aleijão passou a desfilar pelas ruas ostentando a nova condição, sério, convicto, compenetrado do peso e da pompa da gerência de tão encantado e festivo empreendimento. Tire por certo que não ficou vivente daquela praça que não tivesse levado uma prosa sobre o circo que estava nascendo. E, da conversa para a participação na empreitada, foi só triscar. Pimpão começou a costurar a lona com os sacos de açúcar vazios dados pelos comerciantes. As cadeiras, tronchas e toscas, foram feitas a partir de caixotes do Sabão Jabacó.

Empreitada difícil e de caro orçamento foi o mastro que sustentaria a cobertura. Isso foi resolvido de maneira simples, deliberando Pimpão que o circo ficaria descoberto, bastando ter lona ao seu redor. A cobertura viria mais tarde, muitas léguas depois, em meio à prosperidade que todos queriam e já vislumbravam. E nas Pedreiras, o sonho foi tomando jeito e forma: a área circular capinada a vigorosos golpes de enxada.

Foram nascendo os poleiros de tábuas brutas e as cadeiras da primeira classe. Os sacos, costurados uns aos outros, iam construindo a lona, colorida de branco, carimbada com os nomes das usinas de açúcar. Mão−de−obra incansável e graciosa, a garotada não tirava por baixo, e ajudava com competência. A participação direta no nascedouro da empresa, o contato com os problemas que iam surgindo não chegaram a abalar o encantamento e a aura do circo.

A troupe foi−se formando à medida que a construção ia tomando pé. Estácio, malandro de jogo e camelô competente, seria o mágico. Em que pese ser seu número uma tampinha de garrafa que ora sumia de uma mão e aparecia em outra, ora saía do ouvido, ora era arrancada do nariz, nada lhe tirava a estampa e a pose de um Mandrake de chapéu Ramezoni, a demonstrar pelas esquinas o número que iria exibir no circo. Antevia a glória e as viagens:
− Do estrangeiro, nós manda lembrança.

Irmão de Dudé, assim conhecido por ser apenas o irmão de Dudé, presepeiro que ofuscava até o nome do irmão, era o domador de feras, a passear orgulhoso com a cachorra Xolinha.
A cachorra tinha uma fita encarnada no pescoço, e pisava lépida, não tinha que ver mesmo uma artista de circo. Tal e qual Estácio, Irmão de Dudé também não aguentava a ansiosa espera do dia da estréia, enquanto se construía o circo, e demonstrava nas ruas o número que iria apresentar. Enchia os olhos de Xolinha com um olhar furioso e berrava:
− Cu pra riba!

E a cachorra se punha espichada, jogando pro alto as patas traseiras e se equilibrando com as duas da frente. Encantava os curiosos. Irmão de Dudé impava de orgulho e se danava a falar dos leões e elefantes que iria treinar, assim chegasse o circo à África de Tarzan.
As rumbeiras seriam recrutadas entre as raparigas da Coréia, as mais bonitinhas que dançavam no Pastoril do Velho Rabeca.

E só. A não ser que se desse ouvido aos comentários de que Pimpão, cotó de uma perna, ia ser o equilibrista, atravessando o picadeiro num arame, amparado por sua muleta.
Ele não desmentia os rumores e alimentava o falatório.
Comandante sereno, capitaneava o empreendimento que ia tomando formas, ora mais ligeiro, ora mais lento, mas sempre cercado de entusiasmo e carinho. O circo era de Palmares, e todos torciam por seu sucesso.

A estréia foi retumbante, realçada pela luz frouxa dos lampiões de carbureto. Algumas cadeiras quebraram, os meninos entraram por baixo da lona, mas a maioria pagou e a renda alteou ainda mais os sonhos de grandeza da troupe.

Estácio e Irmão de Dudé espicharam como puderam os seus números, metidos em suas roupas novas de artistas, feitas de chita colorida. A cagada de Xolinha no meio do picadeiro,
nervosa como toda prima−dona, não tirou o brilho do espetáculo.
Mas a alegria chegou mesmo foi com o número das rumbeiras, que preencheram o restante do espetáculo cantando e dançando, acompanhadas pelo pífano do competente Goelinha.

Os espetáculos continuaram cheios durante a semana; o público prestigiava e estimulava Pimpão, comandante, dono, bilheteiro, vigia e animador. Estácio gozava as delícias do sucesso e andava durante o dia com um ar misterioso. Até incorporara umas expressões estrangeiras ao seu número – tupi−guarani, segundo ele – que repetia enquanto a tampinha bailava em seus dedos:
− Virêite e fonceonêiti.

Irmão de Dudé dava tratos de estrela a Xolinha, que andava agora com uma calcinha de rendas enfiada no traseiro.
− É pra guardar o priquito dela, senão os cachorros emprenham a bichinha. E completava inchado, engolindo corda do povinho:

− Tás pensando o quê? É cu de artista!
Finalmente, a despedida. Chegado o dia da partida, o povo parou para ver a desmontagem da obra. A Prefeitura cedeu o caminhão do lixo para a primeira viagem. Catende, três léguas na frente, seria o começo de uma série infindável de paradas.
Um mundão sem fim a ser percorrido, terras estrangeiras e nacionais. Um universo. Promessa de glórias, de fortuna e de muitos aplausos.

Enquanto as tábuas eram jogadas na carroceria do caminhão, Pimpão comandava e monologava, como se não estivesse vendo o povo ao seu redor.
− Vou m’embora. Só torno rico e com um circo grande.
Vai levar muitos anos até eu voltar.

Pimpão, Estácio e o motorista na boléia. O resto, inclusive as rumbeiras, se arranchou na carroceria, por cima das tábuas. O motor foi ligado. Choveram adeuses; os artistas olhavam as casas, que só voltariam a ver num futuro que eles não sabiam quando. Só sabiam−no venturoso e rico. Xolinha latia e Irmão de Dudé ainda estralou uma banana para a multidão que ficava para trás.
− Nunca mais vocês vão mangar de nós, seus cornos.

Por muito tempo depois, Pimpão ainda trabalhou seus traques, foguetões e bombas.
A temporada em Catende foi um fracasso total e humilhante. Até fome passaram. Pimpão, eu não garanto, mas os outros voltaram a pé. Alguns ainda conseguiram bigu na estrada. As tábuas e a lona ficaram por lá mesmo: não arranjaram comprador, nem puderam pagar o transporte de volta.
Até chover, choveu. Durou uma semana a primeira e última viagem.

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