segunda-feira, 21 de setembro de 2015

O CAIXÃO DA CARIDADE - Luiz Berto


A gente o avistava quando ele já vinha mais ou menos no fundo da igreja, logo após ter pego sua carga no Hospital Regional. Não tinha hora certa, mas geralmente passava no meio da tarde. Nós largávamos a nossa brincadeira e disparávamos ao seu encontro.

O caixão da caridade era grande, largo, de flandre, feito de tal modo que pudesse abrigar defuntos de quaisquer medidas. Era mantido pela Prefeitura e destinava-se ao transporte de indigentes que morriam no Hospital e cujos corpos não tinham donos. O caixão ia em cima de uma carroça especialmente construída para aquele fim: retangular, sem grandes laterais e com apenas duas rodas no meio; ao seu redor, uma armação de canos de ferro, a partir da qual era tracionada pelas mãos calosas dos varredores de rua.

Os trabalhadores da prefeitura, que o arrastavam, se sentiam aliviados quando nós, os meninos, chegávamos em bandos, gritando, prontos para fazer a parte mais difícil do trajeto: a suave e comprida inclinação da Rua Coronel Austriclínio e, a seguir, a abrupta ladeira do Beco do Cemitério. Os homens iam apenas acompanhando, enquanto nós empurrávamos o defunto em seu último passeio neste mundo. As pessoas cruzavam indiferentes com o álacre cortejo; alguns homens tiravam o chapéu, e algumas velhas se benziam. O fato é que fazíamos muito barulho e galhofa, ziguezagueando com a carroça, tirando fino no meio-fio, tentando atropelar os cachorros que cruzavam a rua e investindo contra as pessoas que estavam nas calçadas. Às vezes, o caixão ameaçava cair e era necessário que parássemos para ajeitá-lo. Os trabalhadores da Prefeitura não se importavam com nossa anarquia, pois, afinal, prestávamos-lhes um favor, aliviando-os daquele fardo sob o sol inclemente.

Compúnhamos o cortejo fúnebre mais alegre e galhofeiro que poderia almejar qualquer defunto. Alegrávamos com nosso excesso de vida a morte de quem em vida tanto sofrera: em geral eram pobres dos campos e das cidades que levávamos no caixão da caridade. Magros, incrivelmente esqueléticos, roídos pela fome secular da Zona da Mata, morriam abandonados no Hospital Regional, sem nome, documentos ou parentes para providenciar rezas e mortalha.

Inchávamos de vida, alegria e zombaria a morte daqueles que carregaram a existência na tristeza, na fome e na injustiça. A carroça pinotava sobre as pedras do calçamento e sacolejava o caixão de flandre.

Às vezes, vinham dois, três defuntos em uma só viagem, tão magros eram seus corpos. Os homens, invariavelmente nus da cintura para cima, vestidos apenas com o ceroulão de brim ordinário do Hospital.

Havia dias em que o caixão dava mais de uma viagem, quando a Morte trabalhava com mais ligeireza no seu roçado. Quando isto acontecia, voltávamos do cemitério com o caixão vazio e íamos só até ao portão lateral do Hospital, por onde a carroça entrava e sumia, a fim de apanhar o próximo passageiro. Na tácita divisão de tarefas entre nós e os trabalhadores da Prefeitura, não nos competia apanhar o defunto na pedra, lá dentro. Mas o resto ficava por nossa conta.

Na subida da ladeira do Baco do Cemitério, redobrávamos as forças para vencer a etapa final. A gritaria e a irreverência prosseguiam:

- Segura o defunto!

- Vamos chorar, minha gente!

No cemitério, já estava o Moura de plantão, pitando seu eterno cigarro de palha, enxada nos ombros e pés descalços.

Tirávamos o caixão de cima da carroça e o encostávamos na beira da cova. Retirávamos o tampo e, só então, vínhamos a conhecer o defunto a quem havíamos prestado o último favor. Na maioria das vezes, emborcávamos o caixão, e o corpo rolava para o buraco com um baque surdo. Às vezes, segurávamos o ex-vivente pelas pernas e pelos braços e o balançávamos antes de atirá-lo à cova.

- Um, dois, três, já!

E o infeliz fazia uma curva no ar e se ajeitava de qualquer maneira na sua última casa, pronto para o descanso que não obtivera no mundo dos vivos.

A maioria era de morte morrida, mas havia também os de morte matada: peixeirada e, principalmente, foiçada. De tiro, nunca, pois era morte de rico, gente capaz de dispensar os favores do caixão da caridade. Estes, os de morte matada, sujavam o caixão com o sangue de seus ferimentos; alguns vinham mutilados pelos fundos cortes da foice. Traziam sempre uma expressão dor, a última, no rosto.

Ajeitados de qualquer maneira na cova, conforme a posição em que caíam quando os jogávamos lá dentro, em contato direto com a terra, estavam prontos para ir de vez com seus corpos deste para outro mundo.

Com as mãos, com os pés e com a enxada do coveiro Moura, cobríamos o morto de terra. Socávamos bem a terra fofa e, acabada a tarefa, lavávamos as mãos numa torneira que havia perto da Capela.

Já saíamos do portão para fora aos gritos e carreiras. Afinal, havia um dia lindo pela frente. Um dia para brincarmos e vivermos.

Do livro A Prisão de São Benedito e outras histórias, Edições Bagaço


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