quarta-feira, 15 de julho de 2015

OS ESFOMEADOS, parte II - Rosemilton Silva

Parte anterior: OS ESFOMEADOS I


II
       Na caatinga do sertão o gado mal se mantinha de pé. O homem, fortificado pela luta diária a procura de alimento, conseguia se manter a suco de coroa-de-frade e a assado de macambira e xique-xique. Isolado de tudo, vendo sair do chão a labareda de fogo expelida pelo calor do sol desfocando a visão à pequena distância, o homem era um projeto de gente. O ruído das “apragatas” saindo dos seus calcanhares no andar trôpego de quem mal tomou a xícara de café matinal, contente mesmo assim porque a “divina providência” determinara que acontecesse.
       — É Deus que qué assim meu fio. É provação divina prá vê cuma nois suporta tudo isso.
       Deu de garra do seu cavalo, colocou-lhe a sela. Era um cavalo velho, magro, cheio de bicheira e escarnando para cair a cabeça. Reclamou do pesado instrumento que lhe caía sobre o espinhaço.
       O homem abençoou os filhos e se despediu da mulher com um olhar carrancudo mas cheio de melancolia e tristeza. E rumou remoendo seus pensamentos e reclamando contra o cavalo.
       — Jumento é qui é bicho bom. Num recrama de nada, mais tomém quando num qué andá aperreia munto o juízo da gente.
       Desesperado, vendo os filhos morrerem de fome, partiu rumo a cidade a procura de um lugar na construção do açude. Sabia que homem do campo não entende dessas coisas, pode fazer um pequeno barreiro mas o que ele sabe mesmo é pegar sua enxada e sair para o roçado.
       — Em todos caso é mió qui nada.
       Na cidade, acostumado a vida do campo, quando chegou em frente a delegacia viu aquela multidão comprimida a gritar: “Rompe Ferro é o maior”. Parou para observar toda aquela turba - o homem do campo raramente pergunta, apenas observa e suas impressões jamais alguém as desfaz. Não conhecia o homem por quem a multidão reclamava e aplaudia, nem mesmo imaginava o porquê de tudo aquilo. Não resistiu. Aproximou-se e perguntou:
       — Seu minino, m’arresponda pru favô: qué qui esses minino de ciloura tão querendo cum esse baruio todo?
       — Não sabe não? É Rompe Ferro que foi preso porque estava fazendo um discurso contra o “majó”.
       — Vixe min’a santa mãe de Deus!...
     Apeou-se do velho cavalo que respirou aliviado e deu um relincho de alívio e alegria. Foi o bastante para que os estudantes desviassem um pouco a atenção e parassem por alguns segundos aquela barulheira. Voltaram-se todos ao mesmo tempo para saber quem era o mais novo membro da barulheira.
       — Chegou o professor.
       Gargalhada geral. O recém chegado ficou de cócoras, cabo da faca na cintura aparecendo. O homem levantou-se, retirou a faca e a colocou em lugar onde não pudesse ser vista mas fácil de ser pega caso houvesse necessidade. Matutou por alguns minutos. Impacientou-se com o barulho. Para ele tudo aquilo era novidade.
       Não ouvia mais o canto dos pássaros ou até mesmo o barulho de suas asas a cortar o céu nas noites insones lá do sítio. O seu rosto era apenas uma interrogação. Uma incógnita. Sua cabeça não parava de se perguntar por que todo aquele barulho.
       — Danou-se. Será qui esses minino quere mermo fazê um’a rivulução só pru causa desse tá de Rompe Ferro? Só pode sê um ricão desses puraqui, mas nunca vi falá o nome dele.
       Homem calado e sisudo, não discutia muito e resolvia suas questões em minutos. Era toma lá, dá cá. Se dizia sim, era sim desse no que desse. Se dizia não, era não torasse o que se torasse.
       Chapéu na cabeça fazendo sombra no rosto mal dava para ver sua cara faminta. Tinha os braços gigantes. As pernas apoiadas no chão pareciam dois enormes mourões. Os olhos vivos procuravam na multidão uma explicação para aquilo tudo.
       — Isso aqui vai pegá fogo. Os milico num vão agüentar munto tempo toda essa zueira.
       Na sua santa ignorância continuava aguardando o término do movimento. Estava querendo arranjar um lugar onde pudesse passar a noite com a tranqüilidade e a segurança necessárias para uma boa dormida. De repente subiram os foguetões. Era a hora de uma grande e estrondosa girândola.
       — Oxente. O qui é qui tá aconteceno? A festa da padroeira num é agora, pru quê tudo isso?
       Por um instante ficou a observar o show pirotécnico. O espoucar dos foguetões lhe dava a sensação de festa e veio a lembrança do São João, da fogueira, dos meninos brigando por um espaço para assar a espiga de milho na cinza ou na brasa. A alegria festiva do momento só lhe saiu da cabeça por causa de um ronco no estômago. Os anos de luta nas outras secas lhes davam essa segurança de ficar com fome sem se revoltar. Mas a situação dos filhos era diferente. Eles não estavam acostumados a esse tipo de provação. Foi aí que lembrou-se: estava perto do rio e devia existir por ali uma cacimba para matar a sede dele e do cavalo.
       Caminhou por sobre o leito do rio e um pouco mais a frente encontrou o que procurava: uma cacimba profunda onde a lua aparecia ao fundo, sinal de que ali existia água. Desceu, experimentou o líquido e soube de imediato que talvez nem mesmo o cavalo quisesse bebê-la. O salitre já havia tomado conta de toda a água, mesmo assim foi a ela profundamente. Ao subir trouxe no chapéu um pouco para o cavalo que, depois de evitar várias vezes, também engoliu a água.
       Lentamente foi voltando para o local aonde os estudantes, aos poucos iam se retirando, puxados pelo braço dos pais mas mesmo assim  protestando. No local ainda restava uma pequena multidão liderada por Zé do Bode, que havia recebido esse apelido por gostar de criar bodes no quintal de sua casa, mas pouco ligava para o apelido e até já havia perdido o seu nome verdadeiro.
       O delegado, amigo de Zé do Bode, amizade conquistada pela inteligência do estudante, chegou à porta.
       — Zé, vai para casa e amanhã a gente conversa.
       — Porra, capitão, você não está sendo correto com Rompe Ferro.
       — Amanhã a gente conversa. Por favor, vá para casa.
       — Tá bom, eu vou. Mas fique sabendo que deixamos de ser amigos.
     O diálogo foi curto e cheio de ódio da parte de Zé do Bode que não se conformava em ver um amigo prender outro amigo sem nenhuma culpa. Aos poucos a figura do dono do cavalo foi se chegando à porta da delegacia. O delegado deu alerta geral e esperou com os soldados em prontidão para qualquer eventualidade.
       — Lovado seje nosso sinhô Jesus Cristo.
       — Prá sempre seja louvado. Quem é o senhor e o que deseja?
       — Capitão coroné seu delegado, quiria pidí a voismicê que me desse um lugá pra eu drumi. Tô cum fome e cum sono, mas a fome num é nada, cum a drumida passa logo.
       O capitão Fedegoso — era esse o nome dele — era um homem bom, gostava de ajudar mas dizia sempre que tinha um dever a cumprir. Entre hesitante e até certo ponto surpreso, afinal, até aquele hora desde que chegara a cidade, não havia recebido um pedido daquele, ofereceu uma cela mas aproveitou para dizer ao estranho que ele ficaria preso.
       — O senhor sabe, nós não lhe conhecemos e temos um preso muito importante. Aceita?
       — Inhô sim, capitão coroné seu delegado, aceito.

    
       Rompe Ferro na cela vizinha, separada por uma grossa parede de tijolo, fazia sua voz ecoar ao longo do corredor, fechado por uma outra porta de ferro com quatro cadeados.
       — Senhores da milícia, a minha prisão é irregular e não existe nenhum mandado de prisão contra minha pessoa...
       O “Homem do Cavalo” acordou com aquele barulho. O tilintar das correntes do cadeado da primeira cela chamou a atenção dele. O soldado veio avisá-lo de que era chegada a hora de ir procurar outro lugar. O dia já havia amanhecido e eram seis horas, mas devia antes passar pelo Gabinete do Delegado. Saiu, agradeceu e perguntou onde ficava o gabinete, recebendo como resposta uma simples informação com o dedo indicador do local onde deveria se dirigir. Entrou na pequena sala, com dois birôs, duas cadeiras e um sofá, todos de madeira.
       — Boim dia capitão coroné seu delegado!
       — Bom dia. O senhor é daqui das redondezas?
       — Inhô sim. Moro lá no Saco da Onça.
       — O que veio fazer na cidade?
       — É qui lá num tem mais nem xique-xique. Vim a precura de um imprêgo. Diz que tão alistrando gente prá construção do açude.
       — Fala-se nisso, mas até agora não se tem nada de concreto.
       — Cuma, vão fazê a parede de concreto e num chegou ainda?
       — Não, eu não quis dizer isso. Eu disse que até agora ninguém sabe se vão mesmo construir o açude.
       — Inhô sim. Apois intonse vou a precura de outo lugá onde eu possa trabaiá.
       — É bom não ficar aqui na cidade. Não queremos ajuntamento de pessoas por aqui.
       Sem saber o porquê da observação final feita pelo delegado, o Homem do Cavalo saiu a procura de alguém conhecido. Tomou do seu animal, que estava amarrado no quintal da delegacia, passou-lhe a sela, apertou a cilha e se encaminhou para a cisterna da delegacia. Deu água ao cavalo e depois bebeu também um pouco do líquido mais saboroso que o da noite anterior. Saiu pelo portão puxando o cavalo pelo cabresto. Na frente da delegacia montou-se e saiu pela rua principal, ladeira acima.

    
       Zé do Bode tinha acordado mal humorado e discutia com o pai a prisão de Rompe Ferro. A mesa estava com o café posto mas os dois não estavam ainda com fome por causa da discussão.
       — Fedegoso é um merda. Puxa saco de “majó”. Hoje ele me prende e a gente rompe relações de amizade.
       — Calma rapaz. Existem coisas que você só vai aprender quando tiver experimentado o mundo e souber que nem sempre a gente pode ser a gente mesmo.
       Acabou o café e saiu puto da vida para a delegacia. Em lá chegando encontrou o Homem do Cavalo de saída, deu-lhe bom dia e, sem saber porque, disse-lhe que gostaria de falar com ele depois. Entrou “fumaçando” no Gabinete do Delegado. Não estava mesmo com cara para bons amigos. Sentou-se na cadeira de frente para o Delegado sem sequer lhe dar bom dia. Esperou alguns segundos e como o amigo o ignorasse, se fez notar pigarreando.
       — Já vi que você está aí. Somos amigos lá fora. Aqui dentro sou o delegado e você é um civil como outro qualquer que se senta a minha frente.
       — Você é um delegado de merda.
       — Zé do Bode, eu posso até ser um delegado de merda, mas sou seu amigo e lhe admiro muito, profundamente. Tem algumas coisas que você ainda não entende da vida...
       O estudante tentou interromper a preleção do delegado.
       — Não. Deixe-me falar primeiro. Vai me escutar e depois tire as suas conclusões. Olhe, nós temos uma pessoa que nos coloca neste cargo e devemos respeitar as ordens dela. Até certo ponto tenho ponderado algumas porque não quero perder este lugar. Já imaginou eu indo para o alto sertão, onde os pistoleiros não perdoam nem poupam delegado? Quer ver seu amigo amanhecer crivado de balas?
       Zé do Bode pensou. Afinal de contas seu amigo tinha lá suas razões e ele estaria sendo muito duro com Fedegoso. Em seguida, o delegado prometeu soltar Rompe Ferro. Promessa cumprida duas horas depois com os estudantes na frente da delegacia prontos para mais uma passeata. Estava encerrado o caso com mais um discurso, em pleno dia, no coreto em frente a Matriz.


OS ESFOMEADOS 3

2 comentários:

  1. Cada vez mais envolvente a história.

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  2. Muito bom! Essa prosa regionalista me chama atenção pela abordagem criativa do tema, a riqueza de detalhes nas descrições e pela transcrição exata da fala coloquial dos personagens. Muito bom! Parabéns!

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