quarta-feira, 12 de setembro de 2012

A SUCESSÃO DA BOTIJA - Antoniel Medeiros


Eu estava em sono profundo quando criei coisas bastante intrigantes em minha mente: sonhei que ao lado de uma árvore, que ficava à esquerda do antigo casarão dos Vieira, eu encontrava uma botija com muito ouro. De repente, acordei e comecei a pensar em todas aquelas lendas populares relacionadas à botijas com ouro ou qualquer outra coisa valiosa. Tinha ouvido dizer que o sonhador deveria ir o mais rápido possível, em segredo, até o local e cavar sem permitir que nada lhe interrompesse.

No começo pensei comigo mesmo: - Não, Carlos, é mentira. Como você pode tentar ver algum fundamento numa estória como essa?!- Tentei voltar a dormir, mas os pensamentos me perseguiam: “e se for verdade?” “e se o ouro estiver mesmo lá?” “e se eu for e acontecer algo de sobrenatural?”. 
Em meio a tantas perguntas obscuras, surge uma afirmação minimamente racional. Ora, fazia mais de dez anos que eu tinha ido ao casarão dos Vieira: na ocasião eu estava participando de uma aula de história, cujo objetivo era conhecermos a casa da dita família que, diga-se de passagem, era uma das mais tradicionais de nossa região. Passou-se esse tempo e minha memória, muitas vezes falha, não conseguia lembrar da árvore que, no sonho, fazia companhia ao casarão. Se eu não me recordava da árvore, por que ela estaria no sonho? Resolvi ir até o local raciocinando da seguinte forma:
- Irei àquele local sombrio, porém, se não encontrar a árvore voltarei para casa.
Era uma da manhã. Olhei para o lado e Sara estava dormindo profundamente. Levantei cuidadosamente receando algum rangido da cama. Peguei uma pá, um par de luvas, uma lanterna e uma garrafa com água. Entrei no carro e fui em direção ao dito local.
No caminho ia falando sozinho. O assunto? A provável loucura que estava fazendo:
- A árvore provavelmente não estará lá, é só criação de minha cabeça. Isso de botija não existe. 
Quando ia saindo da cidade disse:
- Mas, se acontecer alguma coisa vai ser difícil pedir socorro, a casa fica longe da cidade, em um lugar desabitado... É, seja o que Deus quiser.
Ao chegar em frente ao casarão me arrepiei. A noite fria criava uma neblina que se movimentava próxima à fachada. A princípio, o escuro e a neblina não me deixaram ver se havia ou não uma árvore.
- E agora? Será que eu entro pra conferir? Ah, se existem botijas devem existir fantasmas. Mas, se uma não existe o outro também não deve existir. Se os dois existirem vale a pena arriscar, se não, não há o que temer. Decidido, vou entrar.
Abri a porteira devagar, levantando a lanterna para ver se avistava alguma árvore. Uns duzentos metros separavam a porteira do casarão, eu tinha que me aproximar mais. Andei mais um pouco, até que tive a impressão de ver alguns galhos balançando. Ganhei confiança, e à medida que me aproximava, a figura da árvore ficava mais nítida. Ao ter certeza, corri para junto do vegetal: estava exatamente no lugar em que sonhara. Não acreditava no que via. 
Nesse momento troquei o medo pela felicidade, nada mais me assustava naquele lugar, até que olhei para trás. A imagem pavorosa do casarão me deixou perplexo: a casa de madeira cheia de vidraças quebradas e teias de aranha me fez sentir em um verdadeiro filme de terror. 
- Ok. É só cavar e sair daqui- Pensei.
Virei-me e tentei expulsar as más sensações, parcialmente sem sucesso. Posicionei-me no lugar indicado no sonho, peguei a pá, e ao cravá-la pela primeira vez na terra, um vento frio começou a soprar por trás de mim, de forma que atingia minha nuca por completo. Meu suor ficou mais gelado do que o vento, mas eu sabia que tinha que seguir todas as normas estabelecidas na lenda, eu não podia parar.
Quanto mais cavava mais forte o vento ficava, e eu ia sentindo o sangue correndo rapidamente em minhas veias, o coração palpitando aceleradamente. Ao avançar mais em minha empreitada, vi uma espécie de vulto passar ao meu lado. Eu não parava de cavar, mas o fazia clamando todos os tipos de orações imagináveis no momento. O vulto voltou a passar e eu gritei:
- Ah meu Deus!
A passagem do vulto ia se repetindo cada vez com mais frequência. O medo aumentava gradativamente, mas eu não parava de cavar. Em um dado momento a frequência aumentou tanto que eu percebi que algo estava me rodeando rapidamente. Impressionado, mas com a consciência de que não poderia parar, ainda cavando, olhei para frente. Vi que, de fato, algo estava me rodeando rapidamente, como se fosse o “The Flash”. O vulto foi tomando cor e forma e aumentando cada vez mais sua velocidade. Quando dei por mim, algo parou bruscamente na direção do meu olhar e disse:
-Buh!!!!
Eu, rapidamente, soltei a pá e sai correndo em direção ao meu carro. Mas, meus esforços foram vãos: ao chegar próximo à porteira, um homem de branco apareceu de repente, um palmo a minha frente e repetiu a “saudação”:
- Buh!!!!
Comecei a voltar desesperadamente para o local de onde vim. Ao me aproximar da árvore, minha pernas começaram a ficar pesadas, até que teve um momento que eu não podia mais andar. Tentei pedir socorro, mas o medo era tanto que a voz não saia. O homem de branco apareceu de novo, eu chorava de medo. Aproximou-se. Quando “ultrapassou” a neblina percebi que seu semblante era raivoso. Eu disse quase sussurrando:
- O que é que você quer?
De repente, a expressão furiosa deu lugar a um sorriso descontraído:
- Não seja medroso, meu filho. Eu sabia desde o início que você não iria conseguir segurar a pá... – gargalhou o ser.
Sem entender o que estava acontecendo, e ainda tremendo de medo, continuei calado.
- Eu entendo meu rapaz, você não está acostumado com esse tipo de situação, não é mesmo?! Mas para deixa-lo mais tranquilo irei me apresentar: sou Eurípedes, seu tetravô.
- Tetravô?
- Sim, menino. Morri há alguns anos atrás e estou aqui para dar uma recompensa.
- Recompensa? Recompensa pelo que?
- Por que você é um bom rapaz. Há tempos estava esperando um descendente que tivesse honra suficiente para receber esse prêmio.
- Do que você está falando?- Em tom agressivo
- Não levante a voz para o seu avô. Ora, Carlos, do que estou falando? Do que você veio buscar, ora essa. Continue cavando falta pouco para chegar ao ouro.
- Você está querendo dizer que há mesmo uma botija ali?- Apontando para o buraco.
- Sim, meu caro. Continue cavando, enquanto isso conversamos mais um pouco.
Fiquei desconfiado da criatura que se dizia meu ancestral. Mas, sabia que de qualquer forma estava em suas mãos, só me restava acreditar no que ele estava dizendo. Voltei a cavar, e enquanto isso ele perguntava:
- Quantos milhares acha que vai encontrar?
- Não sei, não faço a mínima ideia. Bem que você poderia dizer.
- Nem eu sei, só posso dizer que há muito ouro aí embaixo. Não pare de cavar.
- Foi você que me fez ter aquele sonho?
- Claro que sim. Eu sempre soube que você conhecia a lenda da botija. Na verdade, era lenda, agora não é mais.
- Como assim?
- Carlos, não seja criança. Toda essa estória é criação do povo. Eu só transformei a criação em realidade, sabia que você iria acreditar.
- Nossa, sou ingênuo.
- Ingênuo e rico.
A intimidade com que meu suposto tetravô falava me diminuía aos poucos o medo.
- Como escondeu esse tesouro aqui sem que os Vieira pudessem dar conta?
- Ah, filho. Os Vieira nem moravam aqui ainda. Só existia essa árvore. Moraram aqui por anos sem ter sonhado que aqui tinha ouro. Mas, você sonhou.
No meio dos risos, consegui sentir alguma coisa na terra. Retirei a coisa do chão e percebi que era uma pequena botija.
- Abra – Disse a alma.
Ao abrir a caixa encontrei várias moedas de ouro puro. Meu coração se encheu de alegria ao ver toda aquela riqueza.
- É seu rapaz! Trate de trocar esse ouro amarelo pelo ouro verde, se é que você me entende.
- Obrigado. Você deveria ser muito rico.
- Não, não. Isso foi fruto de um ato de glória e coragem, longo demais para ser contado agora. Mas, vejo que ainda está pálido, é melhor que saia desse lugar. Foi um prazer conversar com você e faça bom proveito.
- Mas, já vai?
- Tenho que ir, desejo que seja muito feliz, filho. Até a vista.
- Não, fique mais um pouco...
Depois disso, o homem sumiu sem deixar rastros. 
Voltei rapidamente para o carro com um sorriso esplendoroso. Estava felicíssimo por ter todo aquele ouro. Pensei que minha vida mudaria pra melhor dali pra frente. Dirigi alguns metros tentando achar a melhor forma de explicar aquela loucura para Sara. Não via a hora de chegar em casa e começar a contar todo aquele ouro.
Porém, minha tranquilidade durou muito pouco. Em um dado momento, não sei por qual motivo, tive que olhar para o retrovisor. Ao fazer isso, vi alguém sentado no banco de trás do carro. Minha reação instantânea foi pisar imediatamente no freio. Ao parar o veículo, olhei para trás e não havia mais ninguém:
- Está procurando alguém? 
Ao ouvir essa voz olhei imediatamente para frente: havia um homem de roupas longas e de capuz à frente do automóvel. Com a voz trêmula eu disse:
- O que você quer?
- Volte ao casarão.
- Mas por quê? Não fiz nada de errado, apenas peguei a botija que é minha por direito, pois sou descendente do legítimo dono.
- Você ainda pretende dormir esta noite?
Respondi a esta pergunta com um forte suspiro. O homem continuou:
- Talvez não queira dormir essa noite, estará muito ocupado contando o ouro, não é mesmo?! Se não voltar imediatamente não deixarei que você e os seus desfrutem de uma só noite de sono.
O ser desapareceu e senti os pelos dos meus braços se arrepiarem rapidamente. Não havia escolha, a botija em minhas mãos e a forma como esta chegou até elas evidenciava que tudo o que eu estava passando era verdadeiro. Engatei a marcha ré, alinhei meu carro na mão oposta e segui o percurso de volta.
Ao retornar, abri a porteira, me aproximei do casarão, e ao passar a neblina, vi que a porta estava escancarada. Nunca tinha visto a mansão dos Vieira de portas abertas: alguém esperava por mim.
Aproximei-me vagarosamente. Antes de adentrar, iluminei a sala com a lanterna: vi que havia um tapete vermelho circular no centro. Desviei o olhar para ver o restante da sala, quando voltei meus olhos para o tapete, lá estava a criatura que tinha parado meu carro. Obviamente, fiquei perplexo.
- Saudações, meu jovem. Por que não entra e se acomoda?
Eu sabia que este não era um convite, mas sim uma ordem. Por isso, entrei timidamente na sala. Ao dar os primeiros passos no estranho lugar, lembrei dos filmes de terror e imaginei no mesmo momento: “a porta vai fechar atrás de mim”. Aconteceu o que eu temia, ouvi a pesada porta batendo: “cabrum”. Eu parecia um diretor de cinema trabalhando como ator.
Após alguns segundos de silêncio o homem de capuz disse:
- Quem te deu este ouro?
- Eurípedes, meu tetravô.
O homem riu ironicamente e dando as costas para mim:
- Eurípedes. Só podia ser o Eurípedes, claro!
Ele se virou rapidamente, e apontando agressivamente para mim gritou:
- E com que direito ele te deu esta botija?
Pálido e quase sem forças para soltar a voz, respondi:
- Não sei nada, meu senhor. Ele só me disse que isto era de sua propriedade e...
- Vocês me roubaram, desgraçado! – Com o mesmo tom agressivo.
- Não, não roubei o senhor e...
- Eurípedes, miserável, venha já aqui!
O silêncio tomou conta de todo o lugar, afinal de contas, aguardávamos uma manifestação de Eurípedes.
-Apareça, infeliz! Ladrão de botijas.
Mais uma vez ficamos em silêncio. Alguns momentos depois, rindo, o homem de capuz disse:
-Ele está aqui!
Do nada, surgiu o velho Eurípedes:
- O que quer, Armando?
- O que quero, Eurípedes? O que quero? Você sabe muito bem o que quero. Sempre tentando passar por cima dos outros não é mesmo?
- Do que você está falando?
- Não se faça de idiota, você sabe muito bem do que estou falando. Parte deste ouro me pertence.
Surpreso com a última afirmação, criei coragem para desafiar os fantasmas:
- Chega! Que droga! Enquanto vocês discutem sobre essa botija aí eu não entendo nada! Vocês podem explicar, por favor, como isso veio chegar aqui?
Os dois fantasmas dirigiram o olhar para mim. Pela reação deles, acho que estavam pensando: “que corajoso!”. Eu também não sei de onde busquei tanta coragem para falar daquela maneira. Respondendo aos meus clamores, Eurípedes falou:
- Está bem, filho. Vou contar tudo desde o começo. Você se incomoda, Armando?
- Não, Eurípedes. É bom que ele já vai sabendo como você é ladrão, desgraçado.
- Bom, vou resumir para você: vivíamos em uma vila onde havia dez ou quinze casas. A maior parte do povo era comerciante que vendia seus produtos para pessoas de outras vilas relativamente distantes, pois vivíamos um pouco isolados. Em virtude deste comércio, as famílias conseguiram juntar algumas economias. Todos eram muito unidos, os gastos eram sempre divididos entre todos...
- Certo, certo, certo, certo... vá direto ao ponto, conte o que aconteceu ao garoto – Falou Armando.
- Calma! - Eurípedes continuou- era tardezinha quando eu e Armando estávamos voltando de uma pescaria. Quando nos encontrávamos a certa distância da vila, ouvimos alguns gritos. Eu tentei correr para ver o que estava ocorrendo, mas Armando me segurou: disse que era mais seguro ir devagar para verificar o que acontecia. Aproximamo-nos e fomos para trás de um arbusto. Vimos homens armados e todo o povo reunido forçosamente no centro da vila. Havia choro e medo no lugar. Ouvimos um dos bandidos perguntar para outro:
- Já pegaram tudo?
- Sim, chefe. Todo o dinheiro está aqui, saqueamos tudo. Achei bastante ouro, não muito para o bando todo, mas suficiente para custearmos algumas algazarras.
Eurípedes continuou:
- Depois que o ouro estava em poder dos saqueadores o chefe do bando falou:
- Não fiquem preocupados, esse ouro não fará falta a nenhum de vocês.
- Ele olhou para os outros, e com incrível frieza disse:
- Queimem!
- Enquanto todos estavam sendo executados pelo bando, ficamos estáticos, sabíamos que não havia nada a fazer: nossa família, nossos amigos, nosso povo estava morrendo. Logo quando o bando deixou a vila, não pensamos duas vezes: acendemos nossas tochas, pois já anoitecia, e seguimos os bandidos sem que fossemos vistos.
Eu interrompi dizendo:
- Não entendo uma coisa. Se todas as pessoas morreram, seus filhos morreram também? Ou você teve filhos depois?
- Explicarei isso depois. Após mais de duas horas os seguindo, pararam em um lugar e levantaram acampamento. Vimos que o ouro tinha ficado numa barraca com um dos bandidos. Depois que tínhamos certeza de que estavam dormindo, matamos sorrateiramente o bandido que estava com a botija, tapando sua boca para que não gritasse. Após ter o ouro em nosso poder, queimamos todo o acampamento e fugimos enquanto os bandidos se desesperavam em meio às chamas.
Armando interrompeu:
- Muita atenção, garoto. Você não viu nada ainda, essa é a melhor parte da história. Continue, traidor.
- Fomos embora sem ter certeza de que todos os ladrões tinham morrido. Por isso, enterramos a botija debaixo daquela árvore.
- Mentira- Disse Armando.
- Como assim?
- Você está mentindo, desgraçado, não enterramos o ouro juntos coisíssima nenhuma.
- Ele não precisa saber.
- Ah não... se você não contar eu conto, Eurípedes.
- Ele não precisa saber disso...
- Garoto... depois que pegamos de volta o ouro, este miserável apontou sua tocha para mim, e me queimou morri carbonizado. Depois que morri foi que ele enterrou a bendita botija. Ela está aqui graças a esse infeliz.
- Isso foi verdade, Eurípedes?
Ele ficou de costas e disse:
- Sim, admito que foi um erro de minha parte, mas você teria morrido de qualquer maneira. Dois dias depois um dos homens do bando que tinha sobrevivido me achou e me matou. Também tive um fim trágico e não estou reclamando. Antes de morrer, deixamos nossas descendências pois, duas mulheres de outra vila estavam grávidas de nós. Daí garantimos nossas proles, e surgiu toda essa confusão pós morte.
- Não estou falando de minha morte, estou reclamando meu dinheiro. Ao menos metade desta riqueza toda é minha.
Eurípedes riu e retrucou:
- O dinheiro é todo meu. Se eu não tivesse enterrado a botija o bandido que me matou a teria retomado. Fui eu quem garantiu o dinheiro, fui o último possuidor, portanto, é todo meu.
- Estou cansado de seu egoísmo, Eurípedes. Recuperamos o ouro juntos e fomos os únicos sobreviventes da vila, portanto, nós dois somos legítimos possuidores dele.
Em meio ao caloroso debate, ouvimos duas vozes que pareciam ser de um homem e de uma mulher. Eles diziam:
- O ouro é meu Ana.
- Não, Pedro. Você não tem direito a nada.
Os donos das vozes apareceram sem perceber que estavam sendo vistos. A discussão continuou até que Armando os interrompeu com um categórico “hum... hum...”.
- O que estavam dizendo? - Falou Eurípedes.
- Esse ouro é todo meu, meu caro, todo meu!
- Por que está dizendo estas baboseiras?- Disse Armando.
- Eu fui o marido desta mulher, que porventura veio da vila. Tirei-a daquele lugar um ano antes do ataque. Como tenho todos os direitos sobre ela, e ela foi a única descendente dos que continuaram habitando naquele chiqueiro, sou legítimo sucessor desses bens.
Ana retrucou:
- Não mesmo, Pedro. Quando a vila foi atacada eu já não estava mais com você.
- Ora, ora. O casamento é feito para a vida toda, minha querida. Você foi embora, mas continuamos casados perante a lei.
Sem entender o motivo da discussão entre os dois interrompi:
- Esperem. Mas, por que a discussão? Se eram casados suponho que vocês tenham descendentes comuns, não?
Pedro respondeu:
- Resposta negativa, meu caro. Quando casamos eu era viúvo, já tinha dois filhos com minha antiga esposa, não tive nenhum com essa aí.
Ana complementou:
- É... E para completar, tive um filho com outro homem, e são os descendentes deste filho que devem ter direito ao ouro.
Antes que Pedro revidasse me veio uma dúvida:
- Mas, por que você se diz única “herdeira”? Outras mulheres não saiam de vila com seus maridos?
- O costume que se mantinha era de que os maridos construíssem uma casa na própria vila e lá mesmo constituíssem sua moradia. Eu fui uma exceção: esse aí não gostava da Vila, por isso me tirou de lá...
Armando interrompeu:
- Por isso não tem direito a nada. No momento em que saiu de lá saiu do sistema. Nosso dinheiro nunca saiu da vila: quando alguém morria, as riquezas do defunto ficavam sempre com alguém de lá, nunca saíram.
- Mas, as leis da época estão do meu lado. Tenho direitos sobre os bens da minha mulher.- Falou Pedro.
- Mas, as atuais me favorecem – Disse Ana.
- Leis, leis. De quantas leis opacas vocês precisam para se firmarem? Nossa vila nunca esteve ligada ao governo. Nunca pagamos impostos, nunca recebemos benefícios, nada nosso tinha a ver com o governo: nós mesmos fazíamos nosso governo, seguíamos as leis da vila, e não do governo, e Armando já disse o que diziam as normas de nosso lugar.- Disse Eurípedes.
Depois do que dito por “meu tetravô”, a discussão começou a se desordenar: todos falavam e ninguém ouvia. Os fantasmas perderam a paciência, de maneira que as falas ficaram alteradas.
Em meio a toda aquela alteração, surge uma voz obscura do sótão:
- Estão gostando da hospitalidade?
Eu já estava acostumado a dialogar com os fantasmas, mas essa voz foi grotesca demais. Começamos a ouvir passos de alguém descendo as escadas, enquanto isso a pessoa que se aproximava aos poucos dizia:
- Todos discutindo democraticamente em minha humilde casa. Só que nunca gostei de democracia, minha democracia sempre fui eu. Não gosto deste tipo de conversa, principalmente quando diz respeito a uma certa botija pertencente a mim.
Todos ficaram em silêncio enquanto o homem terminava de descer as escadas. Quando ele finalmente apareceu, se tratava de um homem gordo com aparência um tanto quanto medonha.
- Quem é o senhor, posso saber?- Perguntou Armando.
- Eu, meu caro?! Sou o dono de tudo isto, inclusive deste ouro que estava...Aliás, está, em minha propriedade. Sou Manoel Vieira, meu caro. Minha terra foi tombada, coisa de governo, mas continua pertencendo a mim, e tudo nela também. Os Vieira devem tomar poder sobre isso.
- Essas terras não eram de ninguém quando escondi esse ouro- Retrucou Eurípedes.
- Mas, as comprei com meu suor, e tudo que havia nela estava incluído nisso, inclusive a botija.
Neste momento o anfitrião apontou para mim e falou:
- Passe isso para cá. 
O medo tomou conta de mim. O mais medonho dos fantasmas estava me dirigindo uma ordem. Se eu descumprisse só Deus sabe o que aconteceria comigo. Quando estendi a mão para entregar o ouro, Pedro foi para a minha frente e disse:
- Não. Isso não pode ser resolvido assim. Nós cinco temos o mesmo desejo: a botija. Nunca chegaremos a um acordo dessa maneira. Seres maiores terão que decidir por nós.
- Sim- Falou Ana.
Os outros também concordaram. Após o consenso, Eurípedes bateu nas minhas costas e disse:
- Sinto muito ter trazido você até aqui em vão, mas você sabe que esta não era minha intenção, não é?!
- Entendo.
- Está pensando em como vai se explicar para Sara?
Eu ri por saber que um ancestral tão distante me conhecia tão bem.
- Sim- Eu falei.
Eurípedes rasgou um pedaço da manga de sua roupa, dobrou, pôs em minha mão e disse:
- Tome. Isso é para provar que esteve aqui.
- Como uma manga pode provar isso?
- Você saberá, meu caro, você saberá. Até a vista.
Após a saudação final, os cinco fantasmas desapareceram. Saí do casarão e já era de manhã. Ia voltando para casa pensando com quem ficaria a bendita botija, e quais seres superiores iriam decidir esta questão.
Ao chegar a minha casa, Sara estava acordada. Abraçou-me e perguntou se havia acontecido algo, eu nunca tinha saído assim, de madrugada. Contei a história, mas ela não acreditou em minhas palavras:
- Então você saiu de casa em busca de uma botija sonhada por você, e ainda passou a noite conversando com fantasmas que levaram a botija?
- Isso mesmo, querida.
- Não está querendo que eu acredite nisso, não é Carlos?
- Sim, estou...
Neste momento lembrei da manga.
- Um dos fantasmas, inclusive que se dizia meu ancestral, me deu uma prova.
- Prova?
Eu não sabia como aquela manga iria servir como prova, porém, confiei em Eurípedes. Tirei a manga do bolso e entreguei nas mãos de Sara. Ela desdobrou a manga. Quando fez isso havia uma moeda de ouro entre as metades da manga dobrada. Sara pegou a moeda e ficou admirada com o ouro. Uns cinco segundos depois, a manga desapareceu misteriosamente.
Com a prova Sara acabou acreditando em mim. Alguns anos se passaram e não sei como terminou a questão da botija. Não sei se Eurípedes era de fato meu tetravô, porém se notou que gostava muito de mim. Não sei se a botija ficou com ele ou com outro, mas de uma coisa eu tenho certeza: nunca esquecerei a experiência com os fantasmas.



ANTONIEL MEDEIROS

11 comentários:

  1. Francisca Joseni dos Santos13 de setembro de 2012 às 07:34

    Espetacular! um conto de assombração maravilhoso! Gostei da trama muito bem feita pelo escritor.
    Francisca Joseni dos Santos - Professora

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  2. "É nóis!" Exclama o professor pensando no advogado e escritor que trouxe ao mundo.

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  3. Valeu , Gilberto !Estamos na fase de dar força e torcer por essa meninada.

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  4. Simplesmente extraordinário esse conto! Viajei junto até a árvore do casarão para arrancar a botija. Parabéns ao autor. Excelente!

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  5. Gostei muito. Boa narrativa, deixa a gente esperando mais...

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  6. Surge um grande talento na região do trairi, um imaginário incrivel.

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  7. Parabéns, Antoniel, execelente conto. Lembro-me de quando eu ficava enormemente feliz quando lia suas produções quando ainda eras meu aluno.

    Cristiane Praxedes Nóbrega

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  8. GOSTEI MUITO DESSA HISTORIA FANTASMAGORICA

    DANDARA RAIANE

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  9. Cara foi demais sua estoria,gostei

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