sábado, 22 de outubro de 2011

“Vaga para solteiros” - Dudé Viana

                      
        Dudé Viana

     Mulheres, com elas não há quem possa. Nunca houve tantas mulheres bem-sucedidas, bem-cuidadas e bem de vida. E algumas conseguem se manter com o mesmo charme e a beleza feminina, como se o tempo não passasse para elas. Mas são mulheres expostas à violência urbana, a violência doméstica e seus impactos sobre elas; a violência sexual, o tráfico sexual que escraviza um milhão de mulheres (...). Um mal que atinge toda a sociedade, porque onde tem violência todo mundo perde e, quando uma mulher é violentada, toda família também é machucada. Essa é uma face da violência, talvez a mais cruel, porque uma vez violentada, ela talvez nunca mais volte a ser a mesma pessoa. A sua vida estará margeada de medo e de vergonha, sem amor próprio, deixando de ser um membro da sociedade, da sua comunidade, para viver em seu próprio mundo.
     A violência contra a mulher é tão comum e antiga, que o mestre Jesus Cristo defendeu uma mulher dizendo: “quem de vós estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra”.
     No ano de 1980, eu, morando no Rio de Janeiro, consegui uma temporada musical de três meses em uma casa de shows, na capital paulista. Como ganhava pouco e não dava para fazer diariamente a ponte aérea Rio - São Paulo, eu optei por alugar uma “vaga para solteiros”, que era anexa à residência de um casal, Tião e Maria, no bairro do Ipiranga e logo nos tornamos bons amigos.
     Maria era uma mulher dócil, de fino trato, educada ao extremo e muito bonita. Tião, apesar de tratar bem os seus amigos, era uma pessoa com suas qualidades contrárias as de Maria e nos finais de semana bebia além do seu limite e batia em Maria.
     Eu cantava na casa de shows, das 22 às 24h e chegava em casa, lá para as duas horas da madrugada, o mesmo horário que o Tião costumava chegar de sua bebedeira. Do meu quarto não tinha como não escutar a ameaça de Tião contra Maria, com a intenção de satisfazer nela desejos lascivos. Era ameaça de morte ou de outro mal qualquer, feitas por meio de gritos, palavrões e todo tipo de ofensas verbais e morais, que causam dores maiores que uma dor física. Maria respondia dizendo que enquanto ele bebesse daquele jeito, nunca mais teria o seu amor. Nessa hora começava a sessão do espancamento: socos, pontapés, bofetões, entre outros. Como eu não podia dormir e naquela época não havia como denunciar, então eu pegava o violão e cantava a música “Maria, Maria” de Milton Nascimento e Fernando Brant, para tentar encorajar Maria a mudar de vida.
     Tião era um gerente de padaria que saía para o trabalho lá pelas 10 horas da manhã. E depois que saía, Maria me visitava com o objetivo de receber ajuda. Me mostrava as marcas de violência em seu corpo e pedia sempre para eu passar pomada onde suas mãos não alcançavam. Tião às vezes me procurava também para falar de mulheres que, segundo ele, “são todas iguais e só o nome e o endereço é que mudam”. Eu lhe dizia que mulher e violão é que são iguais: uma mulher pode ter o toque feminino semelhante ao de outra mulher, mas nunca igual. Um violão tem o toque parecido com o toque de outro violão, mas jamais igual. Com isso ele pedia para mudar de assunto e ameaçava quebrar o meu violão para eu nunca mais tocar a música “Maria, Maria”. Quando eu lhe dizia que era uma coincidência (...), o mesmo, irritado, dizia: “é coincidência demais para o meu gosto e a Maria é minha mulher, assim, eu bato nela na hora que eu quiser!”.
     Um certo dia, Tião e Maria estavam brigando, então eu peguei o violão e comecei a cantar Maria, Maria. Quando eu cantava a parte que diz “mas é preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana sempre”, o Tião meteu um chute na minha porta, que arrebentou a fechadura e entrou gritando: “a partir de hoje você está proibido de cantar e de tocar essa maldita música ou vou quebrar esse maldito violão!”. No dia seguinte, depois do efeito da bebida, me pediu desculpas e mandou consertar a minha porta.
     Mais uma vez, depois de sua saída para o trabalho, Maria foi ao meu encontro, com um ferimento em suas costas - entre as duas “pás” - e me pediu para eu colocar um “band-aid” no machucado causado pela fivela do cinto do Tião. O “band-aid” foi colocado, mas foi preciso que ela tirasse a blusa; como também não tinha como não ver seus lindos seios (...), de mamilos a vermelhados que pareciam dois morangos de tão belos que eram. Minhas mãos tremiam e o meu coração só faltava pular pela boca. Maria ao me ver trêmulo... perguntou-me:
- Você está sentindo alguma coisa?
- Não. Eu não estou sentindo nada!
- Você está com nojo de minhas feridas?
- Imagina Maria, eu ter nojo de você?
- Você só sente amizade, por mim?
- Agora, com você, eu aprendi que o coração de um homem jamais sai pela boca.
     Na noite seguinte, a briga entre os dois foi ainda maior, porque Tião queria saber quem havia colocado o “band-aid” na Maria. E na briga, Tião deu um chute no quadril da Maria que no outro dia ela não conseguia caminhar direito e foi ao meu quarto levando um recipiente de creme para eu dar uma massagem no seu quadril.
- Ah, Maria, isso não. Eu nunca dei massagem em ninguém.
- Mas não tem mistério nenhum, eu vou te ensinando...
     A partir desse momento, passei a me criticar por minha fraqueza de ter aceitado uma mulher sofrida, que me pediu ajuda e a invejar os médicos pela resistência à beleza feminina e às vezes me comparava a uma mosca que gosta de chagas... É por isso que eu digo, com as mulheres não há quem possa.
     Nessa época, a pedido de um jornal paulista, eu estava pesquisando o Violão e a sua evolução histórica desde o século VII, na Europa, até sua chegada ao Brasil, no século XVII, através da Viola. O Violão e suas raízes, derivadas de outros instrumentos musicais tais como a Cítara romana, a Chiterma oriental, a Lira, a Harpa e o Alaúde, até as primeiras décadas do século XX, não podia entrar em salões da Elite, porque era tido como “maldito”. Por esse motivo eu acho que o violão tem uma história semelhante à da mulher, por mais estranha que possa parecer essa comparação. Mas, segundo a Bíblia, a mulher é derivada de uma costela do homem. Talvez por essa semelhança seja que o meu violão chorava toda vez que Maria apanhava.
     Oito anos depois que eu saí de São Paulo, fui fazer um trabalho em um espaço do SESC de Belo Horizonte - MG; e lá, encontrei a Maria, que foi prestigiar o meu trabalho. Ela estava com um empresário da construção civil, com o qual estava casada e um casal de filhos. E aí me contou que Tião morreu de cirrose hepática, um ano após a minha saída da “vaga para solteiros”.

Publicações anteriores:
Jornal de Fato, 3 de junho de 2007.
Jornal Zona Sul, junho de 2009.

     Dudé Viana é cantor, compositor e autor do livro: A Saga Benevides Carneiro.


    
     Contatos para shows e para adquirir o livro: dudeviana@yahoo.com.br / (84) 8835 0871 / 9648 7947


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