quarta-feira, 26 de julho de 2023

DIÁRIO DE UMA SUICIDA

 


DIÁRIO DE UMA SUICIDA


Hoje amanheci com vontade de antecipar a data da minha morte. Acordei por volta das cinco e meia e olhei, com gostinho de vitória, para o meu marido dormindo. Ele permaneceu roncando expelindo um forte odor de álcool, e nem pensei em acordá-lo. Ontem, no final da noite, ele me bateu no rosto. Ainda hoje, ele deve fazer o mesmo por volta das treze horas quando voltar do trabalho para almoçar e descarregar as frustrações adquiridas por lá. É uma rotina que tentei amenizar colocando uma ajudante de cozinha e dando plenos poderes para seduzi-lo, porém as porradas aumentaram. Acredito que é porque tem medo da minha família e justifica sua covardia em mim. Ele sabe que se me abandonar morre, foi o ultimato quando me deflorou, e meu pai, juntamente com meus irmãos, levaram-no para o sitio com o objetivo de castrá-lo, caso não casasse. Eles não aceitaram que eu ficasse jogada sem emprego por aí. 

Com o passar dos anos, ele quase não me procura. Já fiz oral descendo pela costura, no entanto foi tudo em vão. Gostou de imediato, depois ficou com pensamentos que eu lhe havia iniciado na homossexualidade, e as agressões aumentaram. Não respeita nem os filhos. Bate-me em frente a eles, inclusive, como fazem muitos por aí, o maiorzinho tentou me defender e foi nocauteado. É uma fera, e acredito que hoje me vingo dele me matando, pois também será morto em seguida, já que meus familiares desconfiam pelos meus olhos roxos que insisto em disfarçar com maquiagem.

Estou preparando o café da manhã com os pequenos sendo arrumados pela ajudante para irem para a escola. Acho que é melhor usar essa água fervente das batatas para colocar em seu ouvido, porém repenso e vejo que eu teria que ficar com a arma em punho caso ele não morra antes de mim. Olho para a panela cheia fumegante, mas é melhor fazer com as crianças longe. 

Sentem-se que já estamos atrasadas, diz a jovem colocando-os na mesa. É ela quem me acalenta depois das agressões. Já fizemos amor. Ela é bi e eu sou tri, no entanto não achei muita graça roçar meu grilo no dela. Falta alguma coisa, e essa coisa nunca mais se enrijeceu para as bandas das minhas bandas.

Mamãe, a senhora me leva para o parquinho hoje depois da aula?, perguntou minha filha do meio. Ela nem sabe que ficará órfã de mãe.  Podem até me chamar de mulher sem coração, mas quero apenas aliviar minhas dores. Quando você voltar da escola, conversaremos. Tá, diz ela toda satisfeita tomando seu iogurte de morango juntamente com os outros. Minha ajudante prefere uma torrada com vitamina de abacate e guisado.

O famigerado já se encontra no banheiro peidando. Mulher, faça aí soro caseiro que estou com disenteria, disse ele quando a turma já ia saindo. Eles nem se despedem do bicho. Têm medo de uma surra, pois tudo é motivo para puxões de orelhas. Ele deve ter sido muito maltratado quando menino, é tanto que nem eu sabia que matou o pai aos quatorze anos. Ficou num reformatório e agora fica querendo descontar o que sofreu na infância. Estou indo, meu amo, digo isso para que perceba que não ficou nenhum ressentimento da surra de ontem, porém me lembrando do arsênio que trago guardado para uma oportunidade como esta. Preparo o copo d'água, açúcar, sal e arsênio, o ideal para dar cabo de um elefante. Misturo rapidamente e lhe entrego com ele ainda no vaso sanitário. 

Volto para a cozinha. Fico a imaginar como seria ótimo sem ele por perto, e isso me faz repensar meu suicídio. Quem sabe eu só queira mesmo é me livrar dele. Poderia me casar com aquele que sempre me olha com uns olhos pidões. Se não casar,  pelo menos terei liberdade para ser feliz. Sou uma mulher fogosa, e até com pepino já me masturbei. 

Vou preparando o almoço como se nada estivesse para acontecer. Mulher, estou me sentindo mal, grita ele novamente lá do banheiro levantando-se e indo se deitar. Quer que eu chame uma ambulância? Não, deve ser a ressaca. Volto para a cozinha e escuto a gemedeira. Parece que meu sonho vai se tornar realidade. Descasco beterraba, cebola e uma cenoura, com cenoura eu também já me aliviei. Estou fazendo dieta acompanhada por uma nutricionista, psicóloga... contudo nada me interessa a não ser sair dessa prisão. Vou continuar a fingir que está tudo bem, até a hora de me matar. Abro a geladeira que dá gosto ver os mantimentos todos bem condicionados para quem começou há dez dias a ter uma alimentação orientada. Invento as coisas para me distrair desse suplício. Traga-me água, berra ele lá do quarto. Estou com uma secura grande na garganta. Despejo mais arsênio no copo gelado. Quer uma pílula para ressaca? Não, isso aqui já basta. Toma sem pestanejar. Ao entregar-me o copo de volta, treme sem controle. Saio do quarto disfarçando minha satisfação ao sentir, nas pontas dos seus dedos, uma temperatura acima do normal. 

Ele permanece gemendo e eu caminho para a mesa. Encontro o café posto. Sento-me para me deliciar com minha vitória e as guloseimas ali expostas.

Fico tomando meu café, na verdade tomando uma dose extra de satisfação com um pouco da bebida láctea das crianças. Nem acho mais necessário dar cabo da minha vida. Parece que o motivo do meu suicídio era para me livrar do cachorro que está gemendo... Parece que parou. Levanto-me só depois de me sentir saciada. Observo ele caído no chão já sem vida. 

...

O delegado lê a página do dia anterior do diário encontrado nas mãos da esposa morta. “Pedi ao meu marido para trazer iogurte para as crianças.” É, parece que houve um caso de envenenamento coletivo, diz o delegado continuando o interrogatório da única sobrevivente da casa que não provou do iogurte adulterado.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 26.07.2023 – 11h18min.



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