sexta-feira, 30 de junho de 2023

VIDA TRANQUILA NUM ERMO AGITADO

 


VIDA TRANQUILA NUM ERMO AGITADO 


Armadilhas teriam que ser feitas para pegar os porcos selvagens. Aqueles bichos sugam meu suor em troca de nada, resmungou andando pelo milharal onde, aqui e acolá, detectava o estrago. Isto deve ter acontecido ontem à noite, pensou enquanto, de cócoras, descia o barro na moita. Ao levantar-se, ficou contrariado porque o jato forte salpicou alguns pingos nos pés. É, não tem jeito. Ou eu os mato ou morro de fome. Ficou planejando que seria através de veneno ou tiro de espingarda, mas decidiu cavar um buraco e colocar estacas pontiagudas. Vou fazer assim porque, além de exterminá-los, também vou ter carne à vontade. Levantou-se balançando-a para logo em seguida fechar a braguilha. 

Acho que vou começar hoje mesmo. Foi em casa pegar foice, pá e picareta aproveitando a disposição da mulher para pedir um café bem reforçado. Precisa ir ao médico porque essa sua coceira já passou dos limites, comentou sua esposa abanando-se com uma tampa de panela. O fogão de lenha já estava com brasas quando resolveu espantar a galinha que teimava em pôr ovos por trás do silo. Eu já disse para você colocar nem que fosse limão com sal, mas você acha bom ficar me tirando a paciência com essa esfregação na virilha que não acaba nunca. 

Querem comprar alguma coisa?, era o mascate da bicicleta gritando lá da estradinha. Levantou-se do tamborete e foi até a janela. Tem agulha, linha, pomada para coceira... Compre pra ver se melhora dessa coisa. Só você não percebe o quanto é deselegante olhar para um homem que vive se esfregando, falou baixinho por trás dele na janela do oitão reforçando O compre! 

O vendedor já vinha se aproximando com chapéu de palha e camisa de mangas compridas naquele solzão de fazer pipoca. Quanto custa a pomada? É só vinte. Naquele momento estava com pouco dinheiro debaixo do colchão, mas tinha mercadorias. Eu troco numa cuia de milho, quer? Como eu vou levar esse milho, perguntou o vendedor apontando para o bagageiro da bicicleta já lotado com a mala cheia de bugigangas? Bote aí amarrado no quadro da bicicleta.

Fizeram o negócio e o vendedor se foi comemorando a boa troca sem se cansar de empurrá-la de ladeira acima. Naquele deserto de gente, uma bicicleta com um vendedor era coisa rara, e mais ainda com o filho pequeno em cima da mala servindo de mascote para o mascate, nunca se tinha visto. 

É melhor eu passar logo agora, disse ela já destampando o frasco. Ao fechar a janela, ele percebeu que a dobradiça estava quase caindo. Eu pensei em colocar só à noitinha quando tomar banho, o que acha? A dobradiça ou a pomada? A pomada, claro, essa outra depois eu ajeito. Pode ser, mas quando se coçar lembre-se de lavar as mãos antes de tocar em mim. Voltaram para a mesa tentando terminar a primeira refeição do dia. 

Que costume você tem de ficar me agarrando enquanto tomo café. Alguma coisa roçou na porta de baixo da cozinha. Eu lhe agarro porque me dá vontade quando a observo com esse vestidinho apertado e sem sutiã. A porta novamente foi forçada. Veja aí que bicho está tentando entrar. Ele levantou-se cantando: é o amoooor... Ao olhar por cima, percebeu um porco selvagem fuçando atrás de uns caroços de milho que haviam jogado para a galinhada. Voltou pé ante pé, pegou a espingarda e... o bicho ficou esperneando pelo terreiro no maior alvoroço. Cadê o facão? Ela quase se engasgou com cuscuz seco ao dizer que estava por trás do pilão. Que bicho da carne dura, disse ele depois de cortá-lo ao meio. Cadê o sal? O restinho que tinha eu botei no feijão. Pegou o espeto e equilibrou uma tora de carne em cima do braseiro. Fique olhando que eu vou até ao caixão onde guardo sucata ver se consigo alguns parafusos, antes que me esqueça da janela caindo.

Ao adentrar ao quarto escuro das ferramentas, quase cai quando pisou numa das falhas do chão. Tenho que fazer um pouquinho de cimento, pensou procurando... Você sabe onde guardei a chave de fenda? Não! Procurava tanto a chave quanto parafusos sem se esquecer da areia para fazer o cimento. 

Vou ali e volto já. Antes de ficar longe, ouviu: vai ali onde? Parou e olhou para trás admirando-se, mais uma vez,  com vocação que ela tinha em ser dominadora. Ao riacho buscar areia. No caminho de volta lembrou-se dos javalis estragando a plantação. Vou chamar o compadre com seus cachorros para irmos atrás do resto. Separou uma parte daquele que foi morto para negociar com o vizinho a empreitada com os cães.        

Lembrou-se que não havia terminado o café com queijo de cabra, beiju... Este café está amargo. Você não comprou açúcar porque achou que a lata dava cria, foi? Ele tentou se adaptar ao café sem açúcar dizendo que os especialistas estavam indicando que deveria ser tomado daquela maneira. 

Eu disse, desde ontem, que o açúcar estava acabando, no entanto quando você está lendo parece que o mundo deixa de existir. Ele levantou-se e foi revirar as outras vasilhas que guardavam de tudo um pouco. Deixe-me adoçar com rapadura. Procurou, onde está? Acabou-se desde a semana passada, respondeu gritando xô com a galinha que voou para cima da parte de baixo da porta. Não se faça de turista dentro da sua própria casa. O gato passou arrastando uma tripa do porco. Mulher, eu fico olhando o tempo para ver quais os ensinamentos que estão por vir, por isso não tenho condições de me lembrar dos detalhes. 

Um canário que todo ano fazia seu ninho nas telhas da cozinha, acabara de chegar com uns galhos novos. Quero saber quando você vai tapar o açude. No ano passado a enchente levou uma parte da parede do barreiro que ela teimava em dizer que era açude. Se vier uma chuva forte, o resto vai embora e ficaremos sem água doce. Eles tinham como conseguir água salobra nas cacimbas do rio, porém doce, só no açude. 

Desde que uma parte da parede do açude foi embora que você fica prometendo que vai chamar os vizinhos para tapar. Todos da redondeza se beneficiavam com aquela água sem poluição que descia da serra. Tenha calma, minha linda, porque existe um espírito comandando as ações dos homens, das plantas e animais, e o espírito do açude ainda não permitiu que eu fechasse o rombo. Para qualquer argumento dela, ele encontrava uma saída filosófica, por isso diziam que ele era estranho. Preguiça, deve ser o nome desse ser que você diz habitar por lá. Tá por fora. As coisas só acontecem quando chega a hora, disse saindo para cavar a armadilha.

Ao voltar para casa, avistou a mulher na mesa maior com uma caçarola ao lado. O cabo se soltou assim que você  saiu,  e eis aqui a responsabilidade de consertá-lo o mais rápido possível. Uma lagartixa balançou a cabeça entre os caibros parecendo que estava entendendo e concordando com o que ela dizia. E se apresse porque só tenho esta vasilha para fazer o almoço.

Ele já havia se esquecido da janela, do cimento... Já cavou a armadilha? Hoje foi só para demarcar, respondeu tirando o chapéu e encostando as ferramentas na parede sem reboco. Limpei o local, medi olhando de lado, mas não vi nenhuma recomendação de que hoje seria o dia apropriado para se cavar buraco,  por isso voltei. Ela continuava concentrada escrevendo. E esta carta, posso ler? Sim, pode, é para meu pai. Ele se aproximou, sentou-se, respirou fundo e começou a leitura: 

“Querido papai. 

Hoje me lembrei que o senhor me colocava no ombro e saía correndo se passando por meu cavalo de estimação, lembra-se...? 

Muitas recordações de quando fui pedida em casamento e que você quase não aceitava porque o noivo era tido, o povo dizia, como sendo fraco do juízo só porque vivia fazendo poesia e conversando sobre a verdadeira razão do ser existir.” 

E o povo dizia isso de mim, era? Você já sabe que era, continue!

“Lembro-me do senhor me tirando das mãos de minha mãe quando ela quis me bater por eu lhe perguntar como os bebês nasciam. Naquela época, eu já desconfiava que não era a cegonha que os trazia. 

Meu marido é um amor de pessoa.” 

Ele parou emocionado e deu-lhe um beijo na testa. 

“Um pouco sonhador, mas isso eu compreendo porque também sou assim. É disposto, inteligente e matador de javali. 

O senhor me ensinou bastante ao dizer que cada pessoa tem que escolher o que é bom para ela, e eu sabia que minha escolha em relação ao meu companheiro foi a mais acertada que fiz até hoje.

Gostava muito quando o senhor viajava e trazia brinquedos para nós. Eu e minha irmãzinha brincávamos sempre lembrando da sua bondade quando mandava a gente falar a tabuada sentada nas suas pernas. Eu toda vida quis saber mais do que ela, e o senhor, carinhosamente, dizia para que eu não a inibisse. 

Amanhã volto a escrever, pois a cada dia me lembro muita coisa da nossa vida alegre, respeitosa e cheia de felicidade. Quando estou contente, papai, é o senhor que me vem à memória.”  

Deixe que vou colocá-la nos correios. Tá bom. Ele foi até o quarto das ferramentas, abriu um baú e jogou aquela junto a milhares de outras que lá havia. Ela sabia o que ele estava fazendo, entretanto esse foi o trato de viverem a fantasia dela ter tido uma família e nunca creditar que, ainda com o cordão umbilical, foi encontrada num depósito de lixo e criada numa instituição de caridade.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 30.06.2023 – 18h46min.



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários com termos vulgares e palavrões, ofensas, serão excluídos. Não se preocupem com erros de português. Patativa do Assaré disse: "É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”