domingo, 2 de julho de 2023

NEM PRECISOU SOLDAR O CABO

 


NEM PRECISOU SOLDAR O CABO 


No cemitério, a recém-viúva caiu na cova. Tirem-me daqui que ele quer me levar. Os presentes fizeram um cordão humano e conseguiram alçá-la. Só porque eu estava chorando ele pensava que era de tristeza. Viviam brigando e todos sabiam que aquelas lágrimas era de alívio. Enterre antes que ele se levante, disse baixinho para o coveiro. Ele ficou paralisado por ouvir aquilo, e, devagarinho, foi buscar a pá. Aqui está uma gratificação, apresse-se!, deu-lhe um empurrão que se ele não fosse tão ligeiro teria ido junto com o defunto. Calma, minha senhora! Guardou o dinheiro no bolso traseiro e começou o trabalho ajudado pelos familiares do morto. 

Muito obrigada ao senhor, e me desculpe pela emoção. Abraçou o coveiro e aproveitou para furtar a gorjeta que havia lhe dado. Se a senhora quiser eu posso ficar cuidando da cova por trinta ao mês. Ali já existiam as mulheres que regavam as plantas, colocavam areia de acordo com o afundamento etc. Quero sim, pode mandar cuidar que transfiro a cada período, nem se preocupe. 

Deixou o cemitério já telefonando para o amante. Oi, meu bem!, agora estamos livres do fiscal. Ela sentiu um pouco de indecisão por parte dele. Parece que não gostou da notícia? Ele estava com outra na boleia do caminhão, e teve que arrumar uma desculpa a galope. Gostei, é porque a carga está sendo pesada e a tensão aqui é grande. Ela desligou dizendo tudo bem e que ele tivesse calma... Um beijo! 

Era sua mulher?, perguntou a outra fumando um charuto que conseguiu encontrar no porta-luvas. Não, era minha prima que ligou para dizer que o seu marido veio a falecer, respondeu amarrando a camisinha e embrulhando em papel higiênico. Quer que eu jogue naquela lixeira? Ele entregou-lhe o pacote e desceu para olhar os pneus. 

Eu conheço você, disse o borracheiro se aproximando com o calibrador na mão. É, eu sempre passo por aqui quando venho do Sudeste. Calibrou os pneus e retornou para a boleia não mais encontrando a mulher que havia deixado há pouco. Ainda bem que não furtou nada, disse depois de realizar uma vistoria minuciosa. Deu partida e seguiu viagem pensando como iria administrar aquela nova situação. Acho que vai querer me bancar para que eu fique à sua disposição. 

Ela era pegajosa e possessiva e já estava desocupando o guarda-roupa do falecido marido. Pretendo vender num brechó. Ele sempre foi vaidoso e possuía calças ao nível de fio árabe e algodão peruano. Você acha que consigo vender tudo?, perguntou à arrumadeira que estava lhe auxiliando no bota-fora. Sim, e se a senhora quiser eu trago a dona de lá para examinar a mercadoria. A diarista fazia faxina também na casa da empresária e se davam muito bem. Separaram calças, camisas, ternos... O que e isto?, perguntou olhando um bilhete encontrado no bolso do paletó. 

“Querida, hoje eu não posso me encontrar com você porque ela está adoentada exigindo minha presença. Quando ficar boa e sair para se encontrar com o amante, nós nos encontraremos. Um beijo naquele canto que você gosta.” 

Ah, traidor! Enquanto fazia a leitura em voz alta, a empregada continha o riso por saber que era a ela que ele se referia. Pena que não tem data nem nomes. A funcionária pediu licença para ir ao banheiro. Pode, mas volte logo porque temos muito serviço. Fechou a porta e sentiu-se excitada por se lembrar dos momentos em que era encaixada ali. Demorou bastante lá, hein!, comentou a dona da casa notando uma certa palidez e os cabelos um pouco molhados.          

Quanto é o almoço?, quis saber o motorista ao deixar o caminhão na sombra. Naquela churrascaria nova, o preço era calculado no peso, ou por... Prefiro o prato feito, sendo orientado para, depois de se servir, passar no balcão para pegar as proteínas. Posso me sentar aqui?, dirigindo-se a uma caminhoneira que estava calçando botas de canos longos e usando chapéu de rodeio. Pode sim! Ainda bem que não almoçarei sozinha porque sempre aparece muitos homens querendo algo mais do que almoçar.

Estou indo para o nordeste, e você? Ela vinha do Sul trazendo animais de corte exatamente para deixá-los na cidade onde ele morava. Que bom, então poderemos ir em comboio, o que acha? Ótimo!

Ela estava ali porque seu pai caiu doente e não podia mais dirigir. Espero que ele esteja aceitando numa boa você tocar o negócio no lugar dele. A família era rica e ela fazia aquilo como diversão. Ele se preocupa um pouco, mas ao mesmo tempo sente-se orgulhoso por eu ter assumido seu lugar na estrada. O pai, mesmo sendo dono de uma frota de caminhões, sempre gostou de sentir as emoções inerentes à profissão. Olá, Boiadeira!, disse um homem passando com o prato em direção à uma mesa lotada de amigos. Aquele é nosso vizinho e sempre nos encontramos por aqui. 

É que me senti um pouco tonta e precisei molhar o rosto, explicou a faxineira em resposta à sua patroa ter se admirado pela demora no banheiro. Já organizei quase tudo. Marcaram a visita da compradora para o outro dia. 

Saudades de você, disse ao entrar em contato com o caminhoneiro. Eu também meu amorzinho, ele respondeu enquanto estava um pouco distante daquela com a qual havia almoçado. Acho que vou demorar mais um pouco nesta viagem porque está chovendo e tenho que conduzir a carga com lentidão. Logo em seguida bloqueou seu celular para evitar problemas com a galega boiadeira. 

Às vezes gosto de ficar deitada na cabine descansando do almoço. Ela o convidou para assistir televisão com o cortinado fechado, e quando deram por si já havia escurecido. Pelo adiantado da hora, sugiro dormirmos aqui mesmo. Saíram pela madruga torcendo para que o gado resistisse ao estresse da viagem. Que sensação boa se sentir protegida por um homem satisfeito. Que loiraça, pensava ele seguindo-a de perto. Os dois caminhões roncavam na subida da serra igual aos estômagos dos dois já quase beirando ao meio-dia. 

A viúva estava preocupadíssima realizando a venda, quando uma pessoa avisou sobre a chegada de dois caminhões. Acredito que seja ele! Vou já lá! Deixou tudo pelo preço que a compradora queria e foi procurá-lo. Muito bonito para sua cara, foi logo dizendo ao encontrar seu amante beijando aquela loira. 

Dois anos depois, passando pelo mesmo posto, os dois caminhões estavam parados quando um oficial de Justiça o intimou para comparecer ao Fórum. Lá, foi orientando onde deveria ir  fazer o exame de DNA com a mulher que havia aproveitado o conteúdo da camisinha para gerar um filho sem ele saber. 

Hoje, depois de vinte e cinco anos, são quatro os caminhões no comboio. A galega também teve o seu filho, porém naquele momento em que o almoço ia se repetir, como há muito tempo, interromperam a programação televisiva para noticiar que o TSE declarou, para o bem da nação, que o ídolo daqueles profissionais e aprendiz de ditador, tornara-se inelegível por oito anos.    


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 01.07.2023 – 18h27min.



2 comentários:

  1. Trama cheia de ironia, reviravoltas e relações complexas entre os personagens. Conflitos e segredos revelados ao longo da história que refletem a natureza humana e suas diversas facetas, como traição, alívio, astúcia e vingança. Bom texto! - Gilberto Cardoso

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